sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sobre Twelve Monkeys (Os 12 macacos)


Penso que Twelve Monkeys é um daqueles filmes para se ver mais de uma vez. Em 1997, um vírus mortal é liberado, matando 5 bilhões de pessoas. Os sobreviventes ao atentado se refugiam na subterrâneo, e mais uma vez a superfície da Terra passa a pertencer aos animais. O filme conta a história de James Cole (Bruce Willis), um preso com temperamento violento, insolente e anti-social (porém determinado e com boa memória), que de 2035 é mandado de volta para 1996, para investigar a respeito do ocorrido, de forma a ajudar os cientistas a conseguir uma amostra pura do vírus, possibilitando a esses criar uma vacina.

Logo que aceita a missão e é mandado de volta, os problemas de Cole já se iniciam. Ele é mandado para o ano errado (1990) e acaba parando em um manicômio. É então que entram em cena dois personagens que continuaram ligados à história de Cole, Jeffrey Goines (Brad Pitt), também paciente em 1990, e Kathryn Railly (Madeleine Stowe), sua psiquiatra. É interessante notar que sua condição no manicômio se assemelha bastante a de sua realidade inicial, a de prisioneiro. Após sua breve estadia no manicômio, Cole retorna a seu presente (2035) e é mandado mais duas vezes para 1996.

Jeffrey Goines

Brad Pitt interpreta Goines, um “louco” bastante ciente de sua situação. Logo que Cole chega ao hospício, é apresentado a Goines para que lhe mostre o lugar e suas regras. Cole insiste em fazer um telefonema, e Goines inicia um discurso bastante crítico a respeito: “Se comunicar com o exterior? Quem decide é o médico. Se os loucos pudessem ligar à vontade, iam espalhar a loucura através dos ouvidos de gente normal. Loucos por toda a parte! A praga da loucura”. Do seu ponto de vista o hospício é um lugar de isolamento, reclusão e exclusão, mais do que propriamente um lugar de cura. O louco em essência é um divergente de um padrão. Continua: “Na verdade, poucos aqui são realmente dementes, não estou dizendo que você não seja... Mas não é por isso está aqui! Não é a razão! É por causa do sistema... Sabe o que é Louco? É o que a maioria determina... Não há certo ou errado. É só opinião pública”.

Principalmente para quem assiste ao filme pela primeira vez, os discursos de Goines parecem um tanto quanto inusitados, sobretudo quando afirma que seu pai é Deus. Porém, sua forma de pensar, assim como a de Cole, é feita por uma perspectiva muito subjetiva, que não é compartilhada para com os outros. Há de se distinguir doenças cerebrais (anormalidade bioquímica, defeito estrutural do cérebro...) do que se convencionou chamar doenças mentais, não necessariamente explicadas por processos biológicos, mas também (e na maioria das vezes) por problemas, digamos assim, do cotidiano, problemas de vivência.

David Cooper define a esquizofrenia (doença modelo) como “uma situação de crise microssocial, na qual os atos e a experiência de determinada pessoa são invalidadas por outras, em virtude de certas razões inteligíveis, culturais e microculturais (geralmente familiais), a tal ponto que essa pessoa é eleita e identificada como sendo “mentalmente doente” de certa maneira e, a seguir, é confirmada (por processos específicos, mas altamente arbitrários de rotulação) na identidade de “paciente esquizofrênico” pelos agentes médicos ou quase médicos”. Entende-se o termo microssocial como um grupo finito de pessoas, em geral em interação face a face. E é assim que Cole foi tido como louco, encontrado andando por ai de cuecas e com uma capa de plástico, sem identificação, e nervoso a respeito de um vírus.

Kathryn Railly

O primeiro encontro entre Railly e Cole se dá em uma delegacia de polícia, logo após Cole ser detido por agredir policiais. A conversa entre os dois já denuncia algo de errado com Cole: “James você sabe porque está aqui?”, “Porque sou bom observador. Sou decidido”. Para a psiquiatra o diálogo que se segue não aparenta ter nenhum sentido, ela apenas percebe que James já esteve internado (Cole responde que estava preso, no subterrâneo), sobretudo devido a confusão cronológica que detecta em Cole. Para Railly, James pensa estar vivendo no futuro, em 1996. Cole retruca de uma maneira mais inesperada: “1996 é o passado”.

Desde então, Cole é identificado como louco. Os psiquiatras entendem que Cole pensa ter vindo do futuro para salvá-los, mas Cole mesmo afirma: “Como? Já aconteceu. Não posso salvá-los, ninguém pode”. De fato essa é uma premissa que é mostrada durante todo o filme, não se pode mudar o passado. Após a dramática fuga de Cole do hospício, nos deparamos de novo com Railly, agora em 1996, como uma pesquisadora do que denominam Complexo de Cassandra, a agonia de premeditar um mal e a impotência para impedir esse mal. É interessante notar que durante seu seminário “Madness and Apocalyptic Visions”, Railly mostra exemplos que, se para ela são alarmistas que sempre surgem em épocas de tensão (como peste, guerras), para um bom observador do filme, se trata de viajantes no tempo, assim como Cole.

Após o seminário, Cole sequestra Railly. E é ao longo desse sequestro (e com o inesperado término dele, o misterioso desaparecimento de Cole), numa mudança da relação psiquiatra-paciente, para sequestrador-refém, que tanto um como o outro tem sua auto-percepção, e percepção de um para com o outro alterada. Devido ao longo tempo em que é rotulado como louco, e a todo o stress que está passando, Cole se descobre, e se convence como louco: “Não estou mais louco, só sofro de divergência mental. Agora sei e quero que me ajude. Quero me curar”.

Railly por sua vez, tem suas certezas postas em dúvida. Após o sequestro uma previsão de Cole é bem sucedida, se trata de uma brincadeira de um menino que acabou virando uma notícia nacional. Soma-se a isso o fato de Railly ter retirado da perna de Cole uma bala que data da Primeira Guerra Mundial, bem como uma foto sua da mesma época. Em um diálogo com um colega Railly mostra sua preocupação, pois Cole afirmava que 5 bilhões de pessoas morreriam no ano seguinte. Owens retruca “Você é racional, é psiquiatra. Sabe distinguir o que é verdade”. Railly por sua vez: “Todos aceitam a verdade que dizemos. Psiquiatria é a nova religião”.

É interessante neste momento ligar a figura do psiquiatra (e da psiquiatria), como algo que surge com o Estado de direito. Com o processo de separação entre Estado e Igreja, surge uma necessidade de criar instituições que visam substituir a Igreja no seu papel de coesão da sociedade. Se antes o que se tinha era a figura do clérigo, que curava a alma do pecador, do profano, nota-se uma continuidade dessa postura no psiquiatra, que cura o louco, o doente. Para mim, um dos pontos do filme é uma crítica a como a psiquiatria era feita antigamente (a crítica a essa psiquiatria se inicia mais ou menos em 1960), bem como a seu status de “dona da verdade”, assim como qualquer outra ciência. Uma verdade que não é absoluta, mas construída por consenso. E isso não foge à história profissional. A validação do conhecimento histórico é sempre feita pelo tripé: documentação (de maneira bem superficial, “provas”), erudição (leitura), e aceitação pela comunidade acadêmica.

James Cole

Penso eu (e esta é uma interpretação bem própria) que o personagem de James Cole serve como metáfora para a figura do historiador. A diferença é que James retorna para o passado que está investigando, o historiador não. O passado se torna de novo presente para James, o que ao final do filme faz te-lo uma compreensão muito exata sobre o que seria passado, presente e futuro. Se inicialmente pensa que 1996 é o passado, agora não, diz: “Este é o presente. Não é o passado, nem o futuro. É agora”. O presente é o único tempo, digamos assim, concreto, um intervalo de tempo entre um surgir e um desaparecer. Passado e futuro são “abstrações”. O passado é um presente que não se verifica mais, está morto, uma experiência, o futuro, um presente que ainda está por vir, é um vir a ser, uma expectativa, um ideal. Dessa forma, o que existe é sim um presente passado, presente presente, presente futuro.

Cole encarna, assim, um historiador que volta no tempo. Através de vestígios tais como jornais, gravações telefônicas, pichações, os cientistas e Cole buscam obter o máximo de informação a respeito de um acontecimento, a proliferação de um vírus que dizimou a humanidade. Um acontecimento que em sua totalidade é muito mais complexo do que se imagina. E não é porque volta no tempo que sua investigação se torna mais fácil. Sua única pista de como conseguir uma amostra pura do vírus são os supostos responsáveis por tal ato: O exército dos Doze Macacos.

O historiador por sua vez, não tem como verificar o presente já passado. Por meio desses vestígios, desses indícios, e através do seu presente, ele cria uma representação que se referencia ao passado. Quer queira, quer não ele está preso a seu presente, e nada pode fazer, e a história está destinada a continuar sendo reformulada com o passar dos anos. É como a máxima de Cole enquanto assiste a um filme que já havia assistido quando criança: “Isto está acontecendo conosco. Como no passado. O filme nunca muda. Não pode mudar, mas cada vez que vê é diferente, porque você mudou. Você vê coisas diferentes”.


Referências bibliográficas:

BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de janeiro: J Zahar, c2002. 159 p. (Na BCE: 930 B651a =690)

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 281 p. (Na BCE: 930.1:133.4 G493m =690 2. ed.)

Ricoeur, Paul. A memória, a história, o esquecimento [2000]. Campinas: Editora Unicamp, 2007.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 366 p. (Na BCE: 930.1 K86v =690 )

SZASZ, Thomas Stephen. Ideologia e doenca mental: Ensaios sobre a desumanizacao psiquiatrica do homem. Rio de janeiro: Zahar, 1977. 228 p (Na BCE: 616.89 S996i =690 )

COOPER, David Graham. Psiquiatria e antipsiquiatria. 2. ed. Sao paulo: Perspectiva, 1989. 162 p (Na BCE: 616.89 C776p 2. ed. =690 )

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Para pensar

"Quer se situe em 1558 ou no ano da graça de 1958, trata-se, para quem quer compreender o mundo, de definir uma hierarquia de forças, de correntes, de movimentos particulares, depois, apreender de novo uma constelação de conjunto. A cada instante dessa pesquisa, será preciso distinguir entre movimentos longos e impulsos breves, estes, tomados desde suas fontes imediatadas, aqueles, no impuloso de um tempo longínquo. O mundo de 1558, tão enfadonho no momento francês, não nasceu ao umbral desse ano sem encanto. E tampouco, sempre no momento francês, nosso difícil ano de 1558. Cada "atualidade" reúne movimentos de origem, de ritmo diferentes: o tempo de hoje data, ao mesmo tempo, de ontem, de anteontem, de outrora."


"Claude Lévi-Strauss pretende que uma hora de conversação com um contemporâneo de Platão o informaria, mais que nossos discursos clássicos, sobre a coerência ou a incoerência da civilização da Grécia antiga. Estou bem de acordo com isso. Mas é que durante anos, ele ouviu cem vozes gregas salvas do silêncio. O historiador preparou a viagem. Uma hora na Grécia de hoje não lhe ensinará nada, ou quase, acerca das coerências ou incoerências atuais."

Braudel, Fernand in Escritos sobre a história.

Nota. Quanto ao comentário a respeito de Lévi-Strauss, Braudel escreve insistindo na interdisciplinariedade de que as ciências do homem necessitam ter, em uma época em que a história era desmerecida por parte das ciências sociais. Está dando uma resposta ao posicionamento de Lévi-Strauss, da história enquanto conhecimento não científico, e afirmando que o inquiridor do tempo presente também se encontra na condição de "reconstruir", por chegar apenas nas "tramas finas das estruturas", desconsiderando uma longuíssima duração.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Todas as Musas

Uma nova revista online:

todasasmusas.org

A revista é dedicada às artes em geral e suas relações com a história. Ela também tem um espaço para colaboração de graduandos.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Daphnet

Uma das coisas que se tornam rotineiras para o historiador é o manuseio das fontes primárias. Um dos obstáculos é que, dependendo do assunto, as fontes estão fora do alcance do historiador. Nesse sentido, o esforço de alguns grupos para a digitalização de manuscritos tem facilitado o nosso acesso ao conteúdo deles. O Daphnet é um portal que dá acesso para plataformas digitais que contêm fontes primárias, eventualmente complementadas por fontes secundárias e instrumentos de crítica. Estes arquivos podem conter tanto o fac-símile ou a transcrição do manuscrito. Além disso, as plataformas são inter-operáveis, abertas à colaboração de estudiosos, e são certificadas por um conselho de revisores.

As plataformas se dividem em:

Pré-Socráticos: contém uma famosa coleção, em noventa capítulos, editada por H. Diels e W. Kranz, com a tradução paralela para o italiano editado por G. Giannantoni.

Socráticos: é uma coleção de testemunhos sobre Sócrates e sobre os socráticos (Socratis et Socraticorum Reliquiae), editada por G. Giannantoni.

Laertius: é uma coleção dos escritos do historiador e biógrafo Diogenes Laertius.

Filosofia Moderna: é uma seleção de fontes primárias de nomes como Kant, Giordani Bruno, Baumgarten, Descartes, Leibniz e Spinoza.

A plataforma pode ser acessada em italiano, francês, inglês e alemão, mas os documentos estão divididos em duas colunas: uma primeira em grego e a segunda com a tradução para o italiano.


terça-feira, 20 de abril de 2010

Representação

por Amanda Camylla Pereira Silva*

A noção de representação é muito importante para a maneira pela qual são tratados e vistos os documentos e as fontes, e, principalmente, define o que é e qual o objetivo de uma historia cultural.
Para Robert Darnton a noção de representação se constitui como a maneira pela qual as pessoas comuns organizavam a realidade em suas mentes expressando-se em comportamentos e práticas sociais. Apesar das representações possuírem expressões individuais, estas estariam condicionadas por um “idioma geral”, ou seja, um conjunto de símbolos compartilhados, uma estrutura fornecida por cada cultura que criaria possibilidades de expressões, mas também as limitaria. Assim, o historiador deve estudar essas representações passadas, buscando, para isso, captar a diferença e os significados inscritos no que quer que sobreviva da visão de mundo desse passado. Deve-se então, ser capaz de perceber como as culturas formularam maneiras de pensar.

Para Sandra Pesavento as representações são operações mentais e históricas, que criam sentidos ao mundo, sem elas este, em si, não possui significado. É por meio delas que se age no mundo, que se constroem identidades. Nesse sentido a representação fica no lugar da realidade, porém, não como uma imagem perfeita do real: o representante não é o representado, ele guarda relações de semelhança, significado e atributos com este. As representações se expressam nos discursos, assumindo múltiplas configurações, as quais se tornam concorrentes, estabelecendo relações de poder. Assim, a percepção dominante acaba ganhando foro de realidade, de verdade, sendo naturalizada.

À historia cultural cabe, portanto,tentar entender as significações das práticas cotidianas de uma dada época, ou seja, a maneira como as pessoas liam o mundo. Essas representações passadas são acessadas pelo historiador por meio dos documentos e das fontes, que por sua vez também se constituem como representações, já se colocam no lugar do acontecido. “A historia cultural se torna, assim, uma representação que resgata representações, que se incumbe de construir uma representação sobre o já representado” (2003, p. 43). E nessa recuperação das representações antigas o historiador se depara com um “outro”, resgatando uma diferença.

Já para Roger Chartier, representações dizem respeito ao modo como em diferentes lugares e tempos a realidade social é construída por meio de classificações, divisões e delimitações. Esses esquemas intelectuais criam figuras as quais dotam o presente de sentido. Assim, pode-se pensar numa “história cultural do social que tome por objeto as representações do mundo social”.

Chartier também acredita que esses códigos, padrões e sentidos são compartilhados, e apesar de poderem ser naturalizados, seus sentidos podem mudar, pois são historicamente construídos e determinados pelas relações de poder, pelos conflitos de interesses dos grupos sociais. Para Chartier, assim como para Pesavento, as representações são expressas por discursos. Entretanto este autor levanta uma questão, a saber : as formas diferenciadas com que os indivíduos apreendem os discursos que dão a ver e a pensar o real. Para ele as leituras dos discursos feitas pelos sujeitos e a conseqüente produção de sentido são determinadas por certas condições e processos, como por exemplo, da relação móvel entre texto e leitor. Assim, há uma pluralidade dos modos de emprego dos discursos e uma diversidade de leituras que devem ser evidenciadas, revelando que as categorias aparentemente invariáveis são construídas historicamente.

De acordo com Chartier a historia cultural estuda, por um lado, as classificações e exclusões que constituem a configuração social de determinada época e espaço, questionando a existência das estruturas sociais como um real em si mesmo, enquanto as representações são apenas seus reflexos, e, por outro lado, as práticas que, pluralmente, e contraditoriamente, atribuem sentidos ao mundo, rompendo assim com a idéia de que os textos possuem um sentido intrínseco.


Referências Bibliográficas:

CHARTIER, Roger. História Cultural – Entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990. [na BCE: 930.85 C486c =20]


DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos. 2 ed., Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. [ na BCE : 394(44) D223g =690 5. ed. ]


PESAVENTO, Sandra Jathay. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. [ na BCE: 930.85 P472h 2. ed.]


* Amanda Camylla Pereira Silva é aluna do quinto semestre de História na Universidade de Brasília (UnB).



segunda-feira, 19 de abril de 2010

Liberdade antes do liberalismo, de Quentin Skinner

Para aqueles que se interessam por história política ou história das idéias, a obra de Skinner é indispensável. Seus trabalhos são tratados como parte da chamada “escola de Cambridge” – mas, sempre é bom adotarmos cautela com termos como escola ou movimento. Contudo, neste caso podemos identificar duas linhas mestras que orientam os trabalhos de autores como John Pocock, John Dunn e o próprio Skinner. Em primeiro lugar, a consideração das fontes textuais como atos verbais. Ou seja, não como meros retratos ou reflexos de uma dada realidade e sim como intervenções, ações discursivas. Isso é importante porque em política, como em cultura, as palavras não são meros ornamentos do processo histórico. Portanto, trata-se mais de discursos do que de idéias propriamente ditas.
Uma das tarefas para esse tipo de pesquisa é tentar entender os debates que estavam por trás da produção e da circulação dos textos. Ou seja: pensar o passado não como realidade inerte, mas como conflito, estado de tensão aberto para uma pluralidade de futuros possíveis (sendo o nosso presente apenas um destes). Outra tarefa, aproximar-se do vocabulário, das regras de argumentação que configuravam os discursos, para poder interpretá-los. A segunda linha mestra, mais ligada à história das idéias, é a ampliação do leque dos textos estudados, para além daqueles que se tornaram clássicos. Isso é muito interessante porque, exatamente por terem se tornado clássicos, alguns textos são de uma familiaridade enganosa. Textos menores, ou mesmo grandes textos que caíram no esquecimento, geralmente têm um poder maior de nos revelar a densidade do passado, sua estranheza. E assim, podem nos ensinar a reler os clássicos como olhos novos.
Quanto ao vocabulário, um exemplo de outra obra de Skinner, Fundações do pensamento político moderno, é bastante instrutivo. Parte da ciência política se apropriou de Nicolau Maquiavel como uma espécie de fundador, um teórico da racionalidade do Estado moderno secularizado. O problema é que, nos revela Skinner, o conceito de Estado só foi criado no século XVII. Maquiavel dizia outra coisa quando usava o termo estado, com e minúsculo: apenas situação. Isso pode soar como um preciosismo. Mas o quanto nossa reflexão sobre política e sua história se enriquece quando notamos que, apesar de toda naturalidade aparente, a relação entre elas e o Estado é contingente. E quanto a obra de Maquiavel pode ser instigante, exatamente por não falar a nossa língua.
No livro que aqui comento brevemente, Skinner retomou uma tradição esquecida, mas que teve vida intensa até o século XVII. O autor a chama de tradição neo-romana (a qual, aliás, incluiu a obra de Maquiavel – que estava longe de ser um defensor da razão de Estado, ou do cinismo dos príncipes). Segundo esta tradição, uma república só pode ser considerada livre se os seus cidadãos tiverem a prerrogativa de agir e discursar, interferir no destino comum, sem que paire sobre eles qualquer tipo de ameaça ou sanção. Ou seja, uma “liberdade” que pudesse ser suspensa pela república simplesmente não mereceria esse título. Ainda segundo Skinner, apesar de praticamente esquecida (no sentido de não ter parte ativa na vida política) essa tradição deixou ecos, por exemplo, na independência americana e na interpretação que Marx fez do capitalismo como alienação.
Hoje, quando falamos em liberdade, na maioria absoluta das vezes queremos dizer outras coisas. Isto porque vivemos sob a hegemonia de outra tradição, a liberal. De acordo com essa tradição, uma república é considerada livre quando permite aos seus cidadãos que desfrutem de segurança, privacidade e prosperidade. Dizendo em termos mais explícitos: eu sou livre na medida em que os governantes não interferem em minha vida particular. Daí a idéia de política representativa, em que se delega a terceiros o poder de governar. Não a liberdade da ação, mas sim a liberdade da vida privada. Não por acaso, a tradição liberal convive bem com o estado de exceção (é um outro equívoco, a confusão entre liberalismo e democracia). Na medida em que a segurança dos cidadãos é ameaçada, a república pode intervir e mesmo suspender as leis, de modo a restabelecer a ordem.
Há um movimento curioso quando lemos um livro de Skinner. Em alguns momentos, ele parece uma espécie de antiquário, desenterrando textos e documentos. Um tipo de preciosismo com o passado que, aos olhos de muitos, marca a profissão do historiador. Mas, com o tempo nos damos conta de que o que ele está discutindo são conceitos correntes em nossa atualidade: democracia, liberdade, Estado, república. Termos que, de tão familiares, parecem óbvios. Entendemos então que o óbvio é testemunho de que uma tradição se impôs. Por meio dessa tradição, de que muitas vezes não nos damos conta, separamos o possível do impossível, tomamos decisões. E, como o extremamente familiar não inquieta, o óbvio é uma interdição ao pensamento. Assim,um historiador tão erudito e assumidamente acadêmico como Quentin Skinner (o autor declara enfaticamente que não escreve para o “grande público”) acaba sendo mais vital e atual do que muitos outros, que simplesmente nos satisfazem reforçando nossos preconceitos.

terça-feira, 13 de abril de 2010



Já divulgamos aqui acerca da Revista Noctua sob responsabilidade dos graduandos de História da UnB. A Revista Historien é uma produção do Grupo de Estudos Históricos Sapientia et Virtute e seus membros também são graduandos da Licenciatura Plena em História da Universidade de Pernambuco - Campus Petrolina. No espaço virtual do grupo vc pode fazer o download completo da revista.

Revista Historien - ISSN 2177-0786

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Michel Foucault. História e devir.

“O sentido histórico reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado imortal no homem. Cremos na perenidade dos sentimentos? Mas todos, e sobretudo aqueles que nos parecem mais nobres e mais desinteressados, têm sua história. Cremos na constância dos instintos e imaginamos que eles estão sempre atuantes aqui e ali, agora como antes. Mas o saber histórico não tem dificuldades em colocá-los em pedaços – em mostrar seus avatares, demarcar seus momentos de força e de fraqueza, identificar seus reinos alternantes, apreender sua lenta elaboração e os movimentos pelos quais, voltando-se contra eles mesmos, podem obstinar-se em sua própria destruição. Pensamos em todo caso que o corpo tem apenas as leis de sua fisiologia, e que ele escapa à história. Novo erro: ele é formado por uma série de regimes que o constroem; ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por venenos – alimentos, ou valores; ele cria resistências. A história ‘efetiva’ se distingue daquela dos historiadores pelo fato de que ela não se apóia em nenhuma constância: nada no homem – nem seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles.”

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Seminário


A Embaixada da Itália no Brasil,
a Secretaria de Cultura do Distrito Federal
e o grupo de pesquisa Archai da Universidade de Brasília,
têm o prazer de convidar para o Seminário


“Pensar a cidade antiga, imaginar a cidade futura”


e para o lançamento do livro:


“Pensare la città antica: categorie e rapresentazioni”
G.Cornelli (UnB) & G. Casertano (Università Federico II di Napoli)
Editrice Loffredo 2010


a realizar-se no dia 27 de abril 2010 as 18h30
na Sala Nervi da Embaixada da Itália
SES Av. das Nações - Qd. 807


Para poder participar do Seminário, enviar:
Nome completo e RG
ao seguinte e-mail: scientifico.brasilia@esteri.it




terça-feira, 6 de abril de 2010

Álvaro de Campos. Pecado Original

“Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da Humanidade
O que há é só mundo verdadeiro, não é nós,
Só o mundo
O que não há somos nós, e toda a verdade está aí.
Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.

Que é daquela nossa verdade — o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito a mesa de depois?
Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.
Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?
Quantos Césares fui!
Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! meu Deus! meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!"