Como todo bom contador de histórias, vou começar pelo final do título. O título é uma brincadeira com um jogo de palavras orbitando em volta do anacronismo e do historiador.
O papel higiênico do historiador seria uma de suas funções para com o anacronismo, isto é, higienizá-lo, depurá-lo de suas boçalidades e cinismos. Ora, mas porque encarar algo tão caro ao historiador como o anacronismo como uma coisa tão perversa? Este é o cerne da questão. Nem tudo que o homem constrói o faz com índole má. O anacronismo surgiu para ajudar os historiadores a olhar para o passado, alertá-lo de que o seu “eu” é diferente do objeto. Seja um personagem histórico, seja um período como um todo, o anacronismo possibilita ao historiador reconhecer seus limites, o quão distante ele pode estar da verdade de qualquer acontecimento passado. Mas a utilização que os historiadores fazem do anacronismo hoje diferem em muito desse ideal.
Lembro-me da minha primeira aula de História que tive na UnB. Todos os alunos sentados, meio rígidos de ansiedade ou porque não estavam acostumados com as cadeiras do ensino público. Atentos, ou melhor, hipnotizados por aquela figura que se posiciona no fim da sala, sorvendo cada palavra do professor. Lá pelas tantas alguém ousa levantar a mão. A resposta? Não poderia ser outra se não: você está incorrendo num erro comum aos que estão começando a estudar História, respondeu o professor. Era o tal anacronismo, embora o professor não tivesse nomeado o erro. Ser anacrônico é o maior pecado que um historiador pode cometer, falar dele é sinal de sabedoria, nomeá-lo é uma blasfêmia. Quando a aula acabou percebi que alguma coisa naquilo me incomodou. Ora, antes do professor explicar eu não havia concordado com o questionamento do garoto? Havia, e de acordo com o professor eu estava pensando do jeito errado. ”Nós nunca poderemos entender o que eles realmente queriam dizer” – lembro-me exatamente de suas palavras. Sim, algo me incomodava e ia crescendo a medida que eu pensava no assunto.
“Nós nunca poderemos entender o que eles realmente queriam dizer”
O professor falou da imensa distância temporal que nos separava. Certo. E eu concordo com isso então por que eu me sentia como se minhas costas estivessem coçando num lugar que eu não conseguia alcançar?
A resposta veio em outra aula algum tempo depois, quando uma situação como aquela se repetiu, mas dessa vez o professor em questão conseguiu esmiuçar mais um pouco a respeito do “erro comum”. Um estalo, parecia desenho animado com uma lâmpada acendendo sobre minha cabeça. Ora, se nunca poderemos entender o que realmente eles queriam dizer, então o que estamos fazendo aqui? Não é justamente entender o que eles queriam dizer de fato? A resposta é tão irônica e safada que não posso deixar de esboçar um sorriso enquanto escrevo. Em outras palavras o que o professor da minha primeira aula quis dizer foi o seguinte:
“Embora nós nunca possamos entender o que eles realmente queriam dizer, se fosse possível, eu estaria muito mais perto de conseguir isso do que vocês”
De fato, estou sorrindo agora. Obviamente, o professor não diria algo assim abertamente, mesmo porque às vezes a coisa está tão entranhada que ele nem se apercebe disso. A questão é que a resposta não está – a meu ver – errada em qualquer dos sentidos mencionados, há não ser por um problema de implicidade.
Acredito mesmo que nós nunca poderemos entender o que “eles” queriam dizer, não em seu sentido absoluto pelo menos e também reconheço que pelos anos de estudo se pudéssemos fazer tal coisa seria o professor aquele que estaria provavelmente mais próximo disto.
provavelmente…
Há uma passagem em o Guia do Mochileiro das Galáxias de Douglas Adams, que gostaria que vocês lessem:
“Um dia, um aluno encarregado de varrer o laboratório depois de uma festa particularmente ruim, desenvolveu o seguinte raciocínio:
Se uma tal máquina (gerador de improbabilidade infnita) é praticamente impossível, então logicamente se trata de uma improbabilidade finita. Assim, para criar um gerador de improbabilidade infinita é só calcular exatamente o quanto ele é improvável, alimentar esta cifra no gerador de improbabilidades finitas, dar-lhe uma xícara de chá pelando… e ligar!
Foi o que fez, e ficou surpreso ao descobrir que havia conseguido criar o ambicionado gerador de improbabilidade infinita a partir do nada.
Ficou ainda mais surpreso quando, logo após receber Prêmio da Extrema Engenhosidade concedido pelo Instituto Galáctico, ser linchado por uma multidão exaltada de físicos respeitáveis, que finalmente se deram conta de que a única coisa que eram realmente incapazes de suportar era um estudante metido a besta.”
Somos historiadores e em vez de complicados teoremas, trabalhamos normalmente com dicotomias como rupturas e continuidades. Ainda assim, apesar da diferenças, há pontos em comum que perpassam o ambiente acadêmico em si. Aquele apontado por esse texto é o da hierarquia do conhecimento. E para impedir que essa hierarquia seja desrespeitada os historiadores inventaram e/ou se apropriaram de um mecanismo muito eficaz: o Inominável Senhor dos Erros Históricos, anacronismo.
O anacronismo, e nós chegamos no meio do título, quando usado para a manutenção da Hierarquia do Conhecimento funciona como uma venda nos olhos dos historiadores iniciantes . Costuma embaçar a visão do historiador e impedi-lo de pensar por si mesmo. Por isto devemos recorrer aos Grandes Autores, Senhores do Conhecimento Que Quase Chegaram Lá Na Verdade Absoluta. Se pensamos algo diferente deles seremos execrados publicamente. Também, como pode um estudante estúpido contradizer um longo e detalhado estudo sobre os costumes romanos?
Gostaria agora de contar uma historinha dessas que nos mandam por e-mail.
Era uma vez numa praia, um garoto correndo pela areia, pegando as estrelas-do-mar e atirando-as de volta às águas. Nisto, um velho está sentado por ali há algum tempo, acompanhado o trabalho incansável do garoto. Ele levanta-se e vai até o menino.
“Ei rapaz! Venha, venha. Deixe-me falar contigo”
Quando o garoto se aproxima o velho diz:
“Não percebe o quão inútil é isto que está fazendo?”
O garoto pensa um pouco e responde:
“Não, o que é?”
“Jogue esta estrela-do-mar que está na sua mão e verá”
O garoto obedece e joga a estrela no mar. Eles ficam parados por um tempo e o menino olha intrigado para o velho que olha paciente para o mar.
Então, uma onda trás de uma vez só três estrelas-do-mar ao longo da praia.
“Vê? A cada uma que você atira de volta o mar traz outras três. Elogiável o seu esforço em ajudar as pobres criaturas, mas observe: o mar ao contrário de você, não se cansa nunca e continuará a trazer estrelas-do-mar independente do seu esforço. Entendeu? Não faz diferença.”
O velho lhe dirige um olhar bondoso quando o mar coloca uma estrela-do-mar bem aos pés do garoto. O garoto a pega e a atira de volta.
“Fez diferença para essa”
Por mais que nossa vida tenha nos ensinado muita coisa, sempre podemos aprender um pouco mais. O velho da historinha do alto de sua sabedoria tomou no dizer de um amigo meu: uma bela duma catracada. Não que ele estivesse errado veja só. O velho estava simplesmente olhando em outra direção. Enquanto mirava seus pensamentos na lógica da vida, o garoto que nada entendia de lógica olhou para a estrela-d0-mar.
Este é o verdadeiro anacronismo, aquele que nos impede de enxergar o outro, mesmo quando ele não está há mil anos de distância, mas bem aqui na nossa frente falando algo que você acredita ser absurdo, mas não dar sequer uma chance de realmente ouvir o que ele está dizendo. E aqui vamos para a última parte que na verdade é o início do título: o anacronismo como mordaça do historiador.
Quando conseguimos espiar por baixo da venda do anacronismo, ainda assim há um grilhão tão assustador quanto o segundo. A mordaça do anacronismo nos impede de emitir nossas opiniões.
Só recentemente consegui conversar seriamente com um amigo a respeito do comunismo. Isto porque eu tenho mania de dizer que Jesus foi um comunista. Esse amigo meu fica louco quando digo isso.
”Como você pode dizer uma coisa dessas?! A palavra comunismo está carregada de significados contemporâneos que são impossíveis de serem aplicados no passado”
Por causa do anacronismo até então ele nunca ouvira o que eu realmente tinha a dizer sobre o assunto. Era engraçado quando isso acontecia porque nós discutimos centenas de coisas triviais e minha opinião sempre é levada em conta. Menos quando discutimos sobre comunismo. Aí eu tenho que me calar porque sou anacrônico, isto é, burro. Quando falo de Cristo ser comunista, é porque enxergo semelhanças essenciais no que o comunismo traça como ideal de humanidade e nas coisas que Cristo dizia (ou pelos menos que dizem que esse tal de Cristo falou).
Certa vez um jovem interpelou Jesus e lhe pediu que lhe ensinasse o caminho para o Reino dos Céus. Jesus lhe disse que seguisse os mandamentos e amasse ao próximo como a si mesmo. Ao que o jovem responde:
Transcrição de parte do capítulo 19, em Mateus:
20. Disse-lhe o jovem: Tudo isso tenho guardado desde a minha mocidade; que me falta ainda?
21. Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me.
22. E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades.
23. Disse então Jesus aos seus discípulos: Em verdade vos digo que é difícil entrar um rico no reino dos céus .
24. E, outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.
Ora, pode haver algo mais comunista que isso? É o desejo latente pela igualdade. O olhar severo para com pessoas de muitas posses, não porque fossem pessoas más, mas simplesmente porque as coisas materiais não significam absolutamente nada na vida – leia-se Vida Eterna - do homem, mas mais que isso. E é aqui que está o comunismo: o homem está tão apegado às suas posses que pode escolhê-las a entrar no Reino dos Céus.
Como funciona o anacronismo aqui?
Comunismo foi um termo inventado por Marx. Jesus não viveu no tempo de Marx. Na Galiléia não havia indústrias e consequentemente não havia proletariado para fazer uma revolução e instaurar o socialismo, logo o comunismo é impraticável na época de Jesus, uma vez que segundo Marx, é preciso primeiro ter um regime socialista para se chegar ao comunismo.
É mais ou menos isso. Engraçado é que até mesmo quem odeia Marx sabe isso de có. Mas quem falou em Marx? Quem falou em indústrias, proletariado e socialismo? Querem atribuir um sentido às minhas palavras que não são minhas. Mas eu não tenho direito de pensar, Marx já pensou por mim. A partir de momento que o comunismo deixou os pensamentos de Marx , saltou sobre sua língua e atravessou por entre seus dentes o comunismo não mais o pertencia.
O bom anacronismo é capaz de identificar isso. Um dos pressupostos do anacronismo é que as palavras não permanecem imutáveis ao longo do tempo, elas são antes construções culturais de uma sociedade, e a sociedade é um organismo gigante e se eu posso acordar pensando numa coisa e dormir achando outra, imagine algo tão complexo como nossa civilização?
Os anacronistas fetichistas adoram acusar os marxistas de serem anacrônicos por não seguirem a linha do raciocínio de Marx. Imagine então pensar a sociedade hoje tal como Marx pensava há um século, quando é o próprio anacronismo que indica a reformulação dos conceitos.
Se o anacronismo então serve para me amordaçar, jogar-me num calabouço escuro e frio, sozinho, então eu prefiro limpar a bunda com ele.
Como todo bom contador de histórias eu comecei o título pelo fim, fui ao começo e tornei ao fim.
Bill, estudante do 7º semestre de História pela Universidade de Brasília.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
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