Em seu primeiro ensaio intitulado “Solidariedade ou Objetividade?”, do livro “Objetivismo, relativismo e verdade: escritos filosóficos 1”, Richard Rorty tem como objetivo a defesa da fundamentação da objetividade (entendida como intersubjetividade) através da solidariedade, o que nos seus termos significa também uma desconfortante opção ao etnocentrismo, e um abandono da crença da neutralidade como única via de transcender à aculturação (ou seja, um abandono também do projeto iluminista de fundar a solidariedade a partir da objetividade). O autor entende solidariedade e objetividade como dois modos fundamentais pelos quais os seres humanos dão sentido as suas vidas num contexto mais amplo: a primeira como a narração de sua contribuição à comunidade (histórica/atual ou imaginária); a segunda, diferentemente do desejo de solidariedade, pelo afastamento da comunidade e uma busca por uma relação imediata com uma realidade não humana (não cultural, ou não particular), uma relação com a “natureza intrínseca”, o desejo de objetividade.
A tradição da cultura ocidental constituí o exemplo mais gritante de um desejo de objetividade através do abandono da solidariedade, da comunidade. Fundada na noção de busca pela verdade, verdade que persuade por sua própria causa, e pela necessidade de um afastamento para com a comunidade afim da transcendência de nossas próprias luzes, para assim alcançar um estado de neutralidade e imparcialidade do qual entramos em contato imediato com uma natureza primeira, intrínseca da realidade; essa tradição perpassa desde as distinções platônicas entre conhecimento e opinião, aparência e realidade, à matematização da natureza que se segue com Descartes, ao pensamento social liberal do Iluminismo, a enfim os realistas do século XX. Aqui a imagem do intelectual é aquela do homem reflexivo que está em contato com a natureza das coisas, não por intermédio das opiniões de sua comunidade, mas de maneira mais direta.
Rorty chama aqueles que desejam fundar a solidariedade na objetividade de “realistas”, caracterizando-os como tomando a verdade como correspondência à realidade. Assim sendo necessitam de uma metafisica da qual por meio de uma relação de crenças e objetos, é possível estabelecer uma distinção entre quais crenças são verdadeiras (onde há correspondência) e quais são falsas. Necessitam também de uma epistemologia fundada numa justificação não apenas social, mas antes, natural, da natureza do homem e do mundo.
Do outro lado da moeda, aqueles que reduzem a objetividade à solidariedade são chamados pelo autor de “pragmáticos”. Esses entendem a verdade e o conhecimento, não necessariamente como algo correspondente a uma misteriosa natureza intrínseca, mas antes como o que é bom para acreditarmos, a melhor explicação o possível. Sendo assim, a cisão entre verdade e justificação, bem como a objetividade, não se fundam num ponto de vista absoluto, a-histórico, transcultural e natural, atingido pelo escape das limitações de uma dada comunidade; mas antes no maior grau de concordância intersubjetiva possível de se obter. Uma verdade e um conhecimento seriam assim, um elogio a uma crença por mais bem justificada (e aceitada), ou que não necessita de justificação adicional no momento.
Isso não implica na ideia de que toda e qualquer crença é tão boa quanto qualquer outra, nem de que a verdade possui tantos significados quanto procedimentos de justificação. A posição pragmatista não possuí uma base metafísica, nem uma base epistemológica (relativista), mas sim uma base ética baseada na ideia do dialogo. Sendo assim não possui uma teoria relativista, ou uma teoria da verdade. Afirma antes a verdade enquanto um termo para aprovação (significando isso nas mais diversas culturas). Em essência, “a distinção entre culturas diversas não difere em espécie da distinção entre diferentes teorias assumidas pelos membros de uma cultura em particular... O problema em todos esses casos é justamente a dificuldade de explicar por que outras pessoas discordam de nós, a dificuldade de reformular nossas crenças de tal modo a ajustar o fato dessa discordância com outras crenças que abraçamos”(pág.43, 44).
O pragmatismo, assim, não é uma teoria positiva que afirma a verdade enquanto uma coisa referida/relativa a uma outra, mas sim uma posição negativa (e moral), do qual devemos abandonar a tradicional distinção entre conhecimento e opinião, entre verdade e justificação. Para o pragmatista “não há nada a ser dito nem sobre a verdade nem sobre a racionalidade, para além das descrições dos procedimentos familiares de justificação que uma dada sociedade – a nossa – emprega em uma ou outra área de justificação” (pág. 40). “Uma investigação sobre a natureza do conhecimento só pode ser, segundo seu ponto de vista, uma avaliação histórico-social de como pessoas variadas tentaram alcançar concordância sobre aquilo em que acreditam” (pág.41), mais do que uma busca por “essências reais” do conhecimento, do homem e da natureza.
Não há assim um ponto de partida neutro, a-histórico donde o homem reflexivo se destaca da sua comunidade e transcende sua aculturação. A transcendência de nossa aculturação deve vir antes do maior contato e dialogo que possamos estabelecer com as mais diferentes crenças e culturas existentes, “é sermos criados em uma cultura que se orgulhe de si mesma por não ser monolítica – por sua tolerância diante de uma pluralidade de subculturas, bem como por sua disposição em escutar as culturas vizinhas”(pág. 27). A imagem pragmatista da figura do intelectual seria assim bem mais daquele que, através de seus ethnos, consegue dialogar com a diferença; não de maneira apenas relativista (se abstendo de tomar posições morais), ou dum etnocentrismo cego e chulo, mas buscando a concordância de ambas as partes do diálogo.
RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade: escritos filosóficos 1. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. (A objetividade entendida como intersubjetividade e fundada na solidariedade).
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