Um dos temas que marcam a obra de Rawet é o da condição do judeu. O que faz com que sua obra seja uma instigante intersecção entre a biografia pessoal e a história contemporânea. Corretamente ou não, o holocausto (que os estudiosos hoje preferem chamar de Shoah, devido à carga de martírio santo embutida na outra palavra) é considerado o marco por excelência da barbárie do século XX. Por outro lado, o assunto do anti-semitismo no Brasil é menos comentado. Afinal, o único país do mundo totalmente livre de preconceitos, de violência, formado por um povo totalmente pacífico não poderia trazer o grande estigma da perseguição aos judeus... Porém, a mitologia nacional não é confirmada pela história. Sobretudo nos anos 1930, houve no Brasil um intenso controle policial sobre a presença de estrangeiros – vistos como potencialmente perigosos para a segurança nacional. Sobre a questão dos judeus, veja-se por exemplo o que disse um dos grandes formuladores da teoria da democracia racial, Gilberto Freyre:
“Técnicos da usura, tais se tornaram em quase toda parte por um processo de especialização quase biológica, que lhes parece ter aguçado o perfil no de ave de rapina, a mímica em constantes gestos de aquisição e posse, as mãos em garras incapazes de semear e de criar.”
De acordo com os testemunhos de Rawet, sua relação pessoal com a condição judia não era tranqüila. Se ele herdara as marcas do estigma, e não tinha como se livrar delas, por outro lado, Rawet não se dava bem com a vitimização da comunidade judaica. Para o escritor, o sacrifício não era prova de santidade, muito menos de predestinação de povo escolhido. Em suas próprias palavras:
“Meu maior conflito, e não sei se isso me enriquece ou empobrece, é pessoal e ligado à minha condição de judeu, ou de ex-judeu, que mandou o judaísmo e a ambiência judaica às favas. De repente percebi que estava sendo vítima de minha própria chantagem afetiva: o judeu, a eterna vítima das perseguições injustas, o mártir do nazismo alemão, o horror dos campos de concentração, etc..., etc....”
A partir da tensão entre sua identidade, sua história pessoal e familiar de emigrante polonês perdido no Brasil e depois em Brasília, e o desejo de se libertar tanto do estigma quanto da aura de vítima, Rawet escreveu uma série de contos. Um dos mais ricos é “Natal sem Cristo”, publicado em Diálogo, no ano de 1963. É a história de uma ceia de natal, promovida por uma família brasileira. A história é contada na perspectiva de um judeu presente à comemoração, Nehemias Goldemnberg.
Nehemias queria apagar os seus laços com a tradição, procurando o esquecimento absoluto. Seu desejo de libertação está na perda da identidade. Desejo travado em primeiro lugar pela falta de controle sobre seu próprio mundo interior, que trazia o peso do acúmulo dos pesadelos conhecidos como História. Mas o drama de Nehemias não era apenas íntimo, psicológico. Ele era marcado pela presença dos outros, vivos e mortos. Outros que durante a ceia de Natal elegeram a questão judaica como tema de conversa.
A discussão se passaria diante de um Nehemias calado, “diante do Cristo eternizado no espasmo da última dor terrena.” Um dos presentes, Luís, um político iniciante, elogiava a simpatia e o senso político aguçado dos judeus, citando enfaticamente nomes como os de Disraeli, Rotschild e Marx. Albino, importador e representante de empresas norte-americanas, elogiava-lhes a argúcia financeira. A situação era insuportável para Nehemias. Nada mais incontornável do que o preconceito escondido nos elogios, que reafirmavam sua condição de pessoa excepcional.
Porém, num dado momento, os elogios foram interrompidos pela ingênua Lenita, com a seguinte pergunta: “-Mas não foram os judeus que mataram Cristo, papai?”. Somente a partir daí os participantes da ceia começaram a notar a presença de Nehemias, tentando desfazer o nó criado pela ingenuidade da criança. Num momento tragicômico, Malu diria a Nehemias que ele nem sequer parecia um judeu, uma vez que estava comendo leitão.
Nehemias se tornou ainda mais introspectivo, fixando seu olhar no Cristo crucificado. Eternamente em agonia, Jesus era a representação de uma vítima que se apresentava para a humanidade como bode expiatório. Não o Messias, mas a vítima de um equívoco, uma pessoa comum santificada. Equívoco que aproximava Cristo e o judeu, na corrente da memória celebrada naquela noite de natal. Os dois eram ornamentações de um cotidiano banal. Escolhidos aleatoriamente para figurarem como faces extremas das agressões corriqueiras, banais e irrelevantes de uma família qualquer.
Pós-escrito: Se posso ter a ousadia de chamar alguma coisa de obra-prima, reservo o termo para outro conto de Rawet, “O terreno de uma polegada quadrada”. A última frase do conto diz que Deus está no futuro. Não penso nisso como a promessa de um Apocalipse, mas sim como a possibilidade de despertarmos do pesadelo, no dia em que nos tornaremos finalmente seres sem-identidade, em que a máquina de violência que criamos possa ser interrompida.
*Esse texto já saiu, há um tempo, em www.cronopios.com.br
“Técnicos da usura, tais se tornaram em quase toda parte por um processo de especialização quase biológica, que lhes parece ter aguçado o perfil no de ave de rapina, a mímica em constantes gestos de aquisição e posse, as mãos em garras incapazes de semear e de criar.”
De acordo com os testemunhos de Rawet, sua relação pessoal com a condição judia não era tranqüila. Se ele herdara as marcas do estigma, e não tinha como se livrar delas, por outro lado, Rawet não se dava bem com a vitimização da comunidade judaica. Para o escritor, o sacrifício não era prova de santidade, muito menos de predestinação de povo escolhido. Em suas próprias palavras:
“Meu maior conflito, e não sei se isso me enriquece ou empobrece, é pessoal e ligado à minha condição de judeu, ou de ex-judeu, que mandou o judaísmo e a ambiência judaica às favas. De repente percebi que estava sendo vítima de minha própria chantagem afetiva: o judeu, a eterna vítima das perseguições injustas, o mártir do nazismo alemão, o horror dos campos de concentração, etc..., etc....”
A partir da tensão entre sua identidade, sua história pessoal e familiar de emigrante polonês perdido no Brasil e depois em Brasília, e o desejo de se libertar tanto do estigma quanto da aura de vítima, Rawet escreveu uma série de contos. Um dos mais ricos é “Natal sem Cristo”, publicado em Diálogo, no ano de 1963. É a história de uma ceia de natal, promovida por uma família brasileira. A história é contada na perspectiva de um judeu presente à comemoração, Nehemias Goldemnberg.
Nehemias queria apagar os seus laços com a tradição, procurando o esquecimento absoluto. Seu desejo de libertação está na perda da identidade. Desejo travado em primeiro lugar pela falta de controle sobre seu próprio mundo interior, que trazia o peso do acúmulo dos pesadelos conhecidos como História. Mas o drama de Nehemias não era apenas íntimo, psicológico. Ele era marcado pela presença dos outros, vivos e mortos. Outros que durante a ceia de Natal elegeram a questão judaica como tema de conversa.
A discussão se passaria diante de um Nehemias calado, “diante do Cristo eternizado no espasmo da última dor terrena.” Um dos presentes, Luís, um político iniciante, elogiava a simpatia e o senso político aguçado dos judeus, citando enfaticamente nomes como os de Disraeli, Rotschild e Marx. Albino, importador e representante de empresas norte-americanas, elogiava-lhes a argúcia financeira. A situação era insuportável para Nehemias. Nada mais incontornável do que o preconceito escondido nos elogios, que reafirmavam sua condição de pessoa excepcional.
Porém, num dado momento, os elogios foram interrompidos pela ingênua Lenita, com a seguinte pergunta: “-Mas não foram os judeus que mataram Cristo, papai?”. Somente a partir daí os participantes da ceia começaram a notar a presença de Nehemias, tentando desfazer o nó criado pela ingenuidade da criança. Num momento tragicômico, Malu diria a Nehemias que ele nem sequer parecia um judeu, uma vez que estava comendo leitão.
Nehemias se tornou ainda mais introspectivo, fixando seu olhar no Cristo crucificado. Eternamente em agonia, Jesus era a representação de uma vítima que se apresentava para a humanidade como bode expiatório. Não o Messias, mas a vítima de um equívoco, uma pessoa comum santificada. Equívoco que aproximava Cristo e o judeu, na corrente da memória celebrada naquela noite de natal. Os dois eram ornamentações de um cotidiano banal. Escolhidos aleatoriamente para figurarem como faces extremas das agressões corriqueiras, banais e irrelevantes de uma família qualquer.
Pós-escrito: Se posso ter a ousadia de chamar alguma coisa de obra-prima, reservo o termo para outro conto de Rawet, “O terreno de uma polegada quadrada”. A última frase do conto diz que Deus está no futuro. Não penso nisso como a promessa de um Apocalipse, mas sim como a possibilidade de despertarmos do pesadelo, no dia em que nos tornaremos finalmente seres sem-identidade, em que a máquina de violência que criamos possa ser interrompida.
*Esse texto já saiu, há um tempo, em www.cronopios.com.br
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