quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Os gregos e o irracional


Apesar de ser uma obra do século XIX, a escultura em bronze de Rodin sintetiza o nosso senso comum sobre os gregos: os pensadores, e mais, os racionais. E é por isso que o livro de E.R. Dodds me surpreendeu muito. “Os gregos e o irracional” não trata da história da religião grega, mas estuda a relação das mentes gregas com o sagrado. O autor não vê porque dar privilégio aos gregos antigos em detrimento de outros povos acerca dos “modos primitivos de pensamento”. Desse modo, ele analisa aspectos irracionais como a loucura, os sonhos, a epilepsia, a possessão, o daemon, etc., através dos períodos homérico, arcaico e clássico.

De início Dodds trata da insanidade parcial e temporária atribuída a uma intervenção externa. A ate é um estado mental no qual os deuses enfeitiçam a capacidade de discernimento do homem. Este age inconscientemente dando lugar a impulsos não sistemáticos e não racionais. Um exemplo estudado é a súbita mudança de humor dos heróis homéricos.

Outro traço marcante no mundo homérico é o modo pelo qual seus personagens vinculam toda espécie de fato mental à intervenção de um daemon. Este deus indeterminado acompanha a pessoa desde o seu nascimento e interfere - mas não decide - nas ações e falas do indivíduo. Dodds enxerga nessa incapacidade de identificar um deus específico para determinados acontecimentos um vínculo de similaridade entre os gregos e as outras culturas.

Em seguida são destacados os papéis da loucura e dos sonhos. “Nossas maiores bênçãos vêm a nós através da loucura” diz Sócrates no Fedro. Entretanto, “o pai do racionalismo ocidental” não é comumente retratado como quem prefere a loucura à sanidade. Na Grécia os loucos, apesar de serem mantidos afastados, eram vistos com temor respeitoso, pois se acreditava que eles tinham contato com o sobrenatural. Por conseguinte, a epilepsia era uma doença sagrada e a partir dela formou-se a idéia popular de possessão. Já nos sonhos, o homem homérico tratava a visão como fato objetivo. Ele não tinha um sonho, ele via um sonho.

Mais adiante, Dodds aponta o fim do mundo dos daemons. A partir de então o homem ficou sozinho. Todavia, apesar de não ser mais sobrenatural, o mau não deixou de ser aterrorizante. É na Atenas do séc. V a.C que o “iluminismo grego” floresceu e produziu figuras como Platão. Ele cresceu num meio social que tinha orgulho em medir todas as questões ante o crivo da razão. À luz deste movimento, o filósofo podia lidar com o comportamento humano sem o auxílio do ritual, mas o homem comum não. Ou seja, “racionalismo para poucos e magia para muitos.” Assim, para os homens do “iluminismo grego”, o século de Ouro não era o dos primórdios relatado por Hesíodo e sim o tempo vindouro (mas a idade de ouro prometida na década de 440 a.C não coaduna com a realidade da Guerra do Peloponeso).

Por fim, avalia o autor, o racionalismo trouxe consigo perigos para a ordem social e, paradoxalmente, um dos seus efeitos foi a demanda, cada vez maior, da geração seguinte por curas mágicas e cultos estrangeiros.

A fantasia do “racionalismo total” fica muito clara para mim no exemplo de Hipócrates e Asclépio. A polis recorria às duas diferentes figuras, a técnica e a superstição respectivamente, ao mesmo tempo. Hipócrates rejeita em suas obras as práticas mágicas e inicia o caminho que nós chamamos hoje de científico em relação à saúde. Entretanto, a serpente no bastão de Asclépio é, ainda no século XXI, um símbolo da medicina.

Ou seja, E. R. Dodds tenta lançar uma luz sobre a relevância de fatores não racionais na experiência do comportamento humano e se pergunta “porque um povo tão civilizado, esclarecido e racional como os jônios não eliminou de seus épicos nacionais esses vínculos com a cultura e o passado primitivo, do mesmo modo como eles eliminaram o medo da morte.” Ele conclui que nem Protágoras, Sócrates ou mesmo Platão correspondem exatamente à imagem moderna e popular de “racionalista grego”.

Vale lembrar que Dodds não é o pioneiro nesse sentido, Gilbert Murray e Martin Nilson já vinham trabalhando o tema. Mas, o olhar de Dodds se distingue do desses estudiosos por sua experiência como editor de uma revista de estudos paranormais e membro da Society for Psychical Research.

Recomendo esta obra porque, além de questionar alguns lugares-comuns sobre a Grécia e seus filósofos intocáveis, o conteúdo do livro é facilmente entendido por quem não tem conhecimento especializado em Grécia Antiga. Além disso, Dodds faz uso da antropologia e da psicologia social na análise da história (ver sobre a relação entre história e antropologia aqui.) e avança nessa conversa interdisciplinar. Faço apenas uma ressalva ao emprego indiscriminado o termo “primitivo” uma vez que a antropologia tem questionado tal uso.


Dodds, E.R. Os gregos e o irracional. São Paulo: Escuta, 2002.[ na BCE 133.5(09) D642g =690 ]

Murray, Gilbert. Five stages of greek religion. London: Watts, 1943. [na BCE 292.11 M982f 2. ed. ]

Platão. Diálogos I: Menon, Banquete, Fedro. Rio de janeiro: Ediouro, 1999. [na BCE 1(38) P718d 21. ed. =690 ]



2 comentários:

  1. O irracional estaria intrínseco ao pensamento do ser humano? De fato o misticismo não significa por si alguma superioridade, independente dos atos sob tutela racional e científica, mas esse aparente desenvolvimento que a sociedade grega apresentou, não seria pela importância que se deu e por ser levada em consideração nesses atos?
    Pela frase de Sócrates, “Nossas maiores bênçãos vêm a nós através da loucura”, me fica subentendido a importância que o misticismo e o irracional tiveram no desenvolvimento da civilização grega.
    Respondendo em parte a minha pergunta inicial, eu acredito que a irrealidade, o irracional, está sobre a base da própria inteligência, que a partir de um ponto se questiona e entra num estado vicioso de dúvida. A fantasia nasceria da fusão da necessidade de uma resposta com a vontade em potência de alcançar as representações do irreal viventes dentro do homem. Ou seja, o misticismo seria o caminho mais fácil, talvez o único, de se alcançar tais sensações, como o amor, a felicidade....E essa necessidade nasceu apartir do momento em que um humano se comunicou com outro. O interesse por viver, excluíndo sensações instintivas, teve sua gênese quando um homem passou a amar essa dúvida que reina intrínseca, as novas experiências que isso lhe proporcionava, a visão do inefável. E o misticismo pode ter sido "criado", não só para explicar o inexplicável, mas para, inconscientemente, unir pessoas em busca do mesmo objetivo baseado nas mesmas interpretações, formando assim um caráter coletivo, totalmente propício para o içamento de estruturas, com o propósito de perpetuar estes objetivos e de observar e criar respostas à este incoercíevel vão entre o real e o irreal.

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