Muito se fala sobre a recente e imensa inovação temática do campo historiográfico. Por outro lado, quando observamos a situação atentamente notamos um dado curioso, complementar à dita inovação: a grande quantidade de temas pouco explorados. Um deles é a fofoca. Aparentemente fútil e mesquinha, a prática e o estilo da fofoca pode ser excelente indicativo sobre os modos de funcionamento da vida social e dos mecanismos de poder em um dado momento histórico.
Pensando meio aleatoriamente, consigo me lembrar de três livros que poderiam inspirar uma pesquisa desse tipo. O primeiro, o belo capítulo “O rumor também é um deus”, do livro A escrita de orfeu de Marcel Detienne. Detienne apresenta o Rumor como uma espécie de potência grega, representada por um ser grotesco de inúmeros olhos e línguas. O Rumor seria a força criadora das palavras que se proliferam pelo mundo, sem autoria definida. O disse-me-disse que toma conta de todas as vozes, sem origem definida. A figura esboçada por Detienne chega a ser encantadora: o Rumor tem o seu charme por ser uma fala desautorizada, sem amparo institucional, alheia ao poder.
O segundo livro já nos dá uma imagem com menos charme. Em A Sociedade de Corte, Norbert Elias apresenta o quadro de uma vida social regida pela luta pelo prestígio. A Corte seria exatamente o meio social em que o poder tinha como base não a riqueza econômica ou a força militar, mas o “bom nome”, as “boas relações” – algo semelhante à universidade. Por isso, a vida na Corte era um constante jogo onde se procurava aniquilar o prestígio dos concorrentes. Um dos meios eficazes para tal era a fofoca. Interessa notar aqui que a fofoca, diferentemente do Rumor, seria a encarnação do poder e não o que a ele se subtrai. Seus recursos retóricos tinham como base os preconceitos compartilhados, a moral comum. Ou seja: o moralismo e a hipocrisia como armas de luta do fofoqueiro – seu modo de conseguir respeito e ameaçar os outros com o desrespeito alheio. Ainda aqui, o fato de a fofoca não ter um autor em nada diminui seu efeito, por assim dizer, perverso, uma vez que aquele que acredita na fofoca também é fofoqueiro. Um efeito correlato, extrapolando um pouco o dito explicitamente no livro de Elias, pode ser chamado de policial. No sentido clássico do termo - o policiamento como governo, administração dos costumes, correção dos desvios: o alvo da fofoca sendo o comportamento tido como imoral, desviante, escandaloso. Sendo assim, a fofoca como discurso eminentemente conservador e mesmo reacionário. O fofoqueiro supõe-se, aqui, o porta-voz da moral, daí sua inerente hipocrisia. O fofoqueiro como julgador: daí seu olhar de ódio e ameaça.
Um quadro semelhante, mas ainda mais sombrio temos no romance Ninho de cobras de Ledo Ivo. Mais sombrio porque neste caso o fofoqueiro é o delator, o dedo-duro. Já não sendo, portanto, alguém que usa a moral comum para seus jogos de poder, mas o perseguidor, o investigador e o chantagista. Não é para menos: o romance é uma alegoria do autoritarismo em geral e da ditadura militar em particular, situações em que o dedo-duro adquire aura de herói patriota. Por assim dizer, a fofoca como serviço de utilidade pública. Em diferentes situações, a fofoca tem diferentes funções e sentidos. Daí o seu interesse histórico. Ainda que carregado de melancolia. Quando estudamos o tema, estamos diante do nosso lado mesquinho, acusador. A fofoca é convincente porque se baseia em evidências, naquilo que todos vêem e sabem, no que não é segredo para ninguém. Mas a isso, a fofoca sobrepõe suas próprias interpretações e pontos de vista. Que nada mais são do que o senso comum, os pressupostos e preconceitos disfarçados de defesa da ética. Ou seja, mesmo com melancolia, uma pesquisa sobre a fofoca deveria reconhecer que não há nada de mais ordinário (no sentido de comum) do que um fofoqueiro e as banalidades que ele diz, com sua postura, ora de delator, ora de policial, ora de juiz da moralidade pública.
As fontes para tal pesquisa deveriam ser variadas. O tema exigiria uma procura refinada, uma vez que a fofoca desliza socialmente, espalha-se, dissemina-se. E, claro, é fundamentalmente oral. Sua teoria poderia se basear em livros como os que indiquei e na observação da vida social à nossa volta.
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