sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O lenço dos namorados


“Este é o lenço

Este é o lenço de Marília,
pelas suas mãos lavrado,
nem a ouro nem a prata,
somente a ponto cruzado.
Este é o lenço de Marília
para o Amado.

Em cada ponta, um raminho,
preso num laço encarnado;
no meio, um cesto de flores,
por dois pombos transportado.
Não flores de amor-perfeito,
mas de malogrado!

Este é o lenço de Marília:
bem vereis que está manchado:
será do tempo perdido?
será do tempo passado?
Pela ferrugem das horas?
ou por molhado
em águas de algum arroio
singularmente salgado?

Finos azuis e vermelhos
do largo lenço quadrado,
- quem pintou nuvens tão negras
neste pano delicado,
sem dó de flores e de asas
nem do seu recado?

Este é o lenço de Marília,
por vento de amor mandado.
Para viver de suspiros
foi pela sorte fadado:
breves suspiros de amante,
- longos, de degredado!

Este é o lenço de Marília
nele vereis retratado
o destino dos amores
por um lenço atravessado:
que o lenço para os adeuses
e o pranto foi inventado.

Olhai os ramos de flores
de cada lado!
E os tristes pombos, no meio,
com o seu cestinho parado
sobre o tempo, sobre as nuvens
do mau fado!

Onde está Marília, a bela?
E Dirceu, com a lira e o gado?

As altas montanhas duras,
letra a letra, têm contado,
sua história aos ternos rios,
que em ouro a têm soletrado...

E as fontes de longe miram
as janelas do sobrado.

Este é o lenço de Marília
para o Amado.

Eis o que resta dos sonhos:
um lenço deixado.

Pombos e flores, presentes.
Mas o resto, arrebatado.

Caiu a folha das árvores,
muita chuva tem gastado
pedras onde houvera lágrimas.
Tudo está mudado.

Este é o lenço de Marília
como foi bordado.
Só nuvens, só muitas nuvens
vêm pousando, têm pousado
entre os desenhos tão finos
de azul e encarnado.
Conta já século e meio
de guardado.

Que amores como este lenço
têm durado,
se este mesmo está durando
mais que o amor representado?”

Cecília Meirelles
(1901-1964)

Este poema de Cecília Meireles não está no Romanceiro da Inconfidência. Mas nele aparecem dois personagens que fazem parte da memória da Inconfidência: o poeta exilado Tomás Antonio Gonzaga e Maria Doroteia, sua noiva: a conhecida história da separação entre os dois. No poema, não se trata de uma descrição do passado, mas da reflexão de alguém que observa um vestígio (o lenço, provavelmente inspirado na tradição do “lenço dos namorados”) e mergulha na memória pela via do sentimento da nostalgia, da perda, do amor não realizado. O poema não abole, preserva a distância entre presente e passado. Mas, ao mesmo tempo, faz um curto-circuito entre os tempos porque, ainda que extremamente reflexiva (notem-se os pontos de interrogação), a poeta compartilha as emoções de Marília. Emoções depositadas no vestígio, porque o lenço não seria apenas um documento sobre o passado, mas um objeto carregado de sensações. Mais especificamente, a sensação (universal?) da finitude. Outro poema, o de abertura do Romanceiro da Inconfidência, tem alguns versos sobre a relação especial entre a poeta e o passado. Ali, ela diz ser capaz de ouvir as flores, o vento, a voz das ruínas. Neles, a memória estaria presente, não como “representação coletiva” ou “faculdade psíquica” e sim como Musa, voz inspiradora. Uma relação imediata com os vestígios, o passado presente por meio de evocações sensíveis e sensoriais. Estamos no terreno do mito. Não da mentira, porque o mito não cabe nas distinções do verdadeiro e do falso. Definitivamente, este é um terreno vedado àqueles que precisam de metodologia para discorrer sobre a dor dos séculos passados e do presente.

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