sábado, 20 de novembro de 2010

Um historiador não pode se omitir diante de certas coisas

Quem é meu aluno sabe que evito discorrer em aula sobre minhas escolhas político-eleitorais. Não que eu pretenda ser um professor neutro e sim porque acredito que o professor deve incentivar os alunos a fazerem, eles mesmos, suas escolhas (isso também vale para questões teóricas e filosóficas). A tarefa do professor não é convencer o aluno de nada.
Num caso como o desta matéria que saiu no Globo (sobre documentos produzidos na ditadura sobre a Dilma Rousseff), existem mais coisas em jogo do que opções eleitorais e posições políticas. É bom lembrar que regimes políticos de esquerda também torturaram, e muito. Não estamos aqui diante da chatíssima polaridade entre tucanos e petistas. A questão é de humanidade. Um historiador pode ser de esquerda, de direita, conservador e apolítico. Mas, no meu ponto de vista, um historiador deve ter um compromisso ético com a humanidade. Por isso, vou comentar alguns trechos da matéria que me pareceram particularmente assustadores. Isso vale também como exercício de leitura crítica.

1. "história do processo movido pela ditadura militar contra a presidente eleita Dilma Rousseff descrevem a ex-militante como uma figura de expressão nos grupos em que atuou, que chefiou greves e "assessorou assaltos a bancos", e nunca se arr...ependeu." Nunca se arrependeu: isso merece reflexão. Arrependimento é questão de consciência, quem solicita esse tipo de conversão é o confessor. Isso nunca pode ocorrer num tribunal. A Justiça pesa atos e responsabilidades, só numa lógica de tipo fascista um Juiz pode pretender dominar a consciência, a subjetividade do réu. Se a frase consta dos documentos, mostra-se o fascismo da situação ditatorial. Se for do jornal mesmo, mostra o fascismo da situação. Mostra o fascismo da situação, enfim. Essa confusão também é reveladora, porque mesmo que com alegada imparcialidade, a estrutura de um texto jornalístico revela seus pressupostos ideológicos. No caso, a voz narrativa da matéria se confunde, algumas vezes, com a dos torturadores.

2. "Na denúncia oferecida pelo Ministério Público Militar contra os integrantes do grupo de esquerda VAR-Palmares, Dilma é chamada de "Joana D'Arc da subversão". "É figura feminina de expressão tristemente notável", escreveu o procurador resp...onsável pela denúncia." Eu já tinha notado, em outros poucos documentos da ditadura que li, essa mistura grotesca de erudição e violência. Os caras se divertiam inventando referências histórico-poéticas. Joana darc da subversão. O jornal partilha o mesmo gosto duvidoso pelo grotesco. Isso mostra, como comentei algumas vezes na aula, que erudição não é sinônimo de ética.

3. ‎"Os arquivos trazem ainda cópia do depoimento que Dilma prestou em 1970 ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops), delegacia em que ela ficou presa e foi torturada. No interrogatório realizado no dia 26 de fevereiro daquele ano, Di...lma, sob intensa tortura, segundo o depoimento, listou nomes de companheiros, indicou locais de reuniões, e admitiu que uma das organizações da qual fazia parte, o Colina, fez pelo menos três assaltos a banco e um atentado a bomba. Mas ressalvou que nem ela nem o então marido, Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, tiveram "participação ativa" nas ações. " Aqui muita coisa pode ser dita. Em primeiro lugar, a própria estrutura do texto: o estatuto de verdade dos arquivos: a voz do documento se confunde com a voz de quem escreveu essa coisa. Depois, ao contrário, as expressões de dúvida, as aspas, recurso muito usado em jornalismo pra criar desconfiança no que uma pessoa diz. É só comparar: o documento DESCREVE no primeiro parágrafo. O depoimento de Dilma foi obtido sob intensa tortura, SEGUNDO o que ela diz. Imaginemos duas frases diferentes e comparemos seus efeitos de verdade: "Dilma foi torturada"; "Dilma foi torturada - é o que ela diz". Outra coisa é a delação: imagino que quem escreveu a matéria, como eu, nunca foi torturado. Mas conhecemos a dor. Então, com um pouco de imaginação é possível entender como uma pessoa fica destruída durante a tortura. A delação, aliás, é parte da tortura. Porque, e isso, acreditem, já li muito sobre terrorismo de Estado e repressão política, também em regimes de esquerda: nenhum torturador acredita que a delação obtida na tortura é confiável. Ele sabe que, sob tortura, uma pessoa pode dizer qualquer coisa pra se livrar do suplício. No máximo, a delação serve para confirmar uma suspeita. Mas, principalmente, a delação cria na pessoa um tormento incrível: ela se sente depois culpada, traidora. Não consegue mais olhar os antigos amigos etc. Em segundo lugar, temos o cinismo: porque com a delação a responsabilidade pela repressão é transferida. É o delator que passa a ser considerado o culpado da tortura e do desparecimento da pessoa, e não o Estado. É muito cinismo. Neste caso, o Globo simplesmente continua o processo de tortura contra Dilma. Não interessa a opinião que voce tenha sobre ela, contra ou a favor, mas nesse caso não dá para escapar disso. O Globo se tornou um jornal que pratica Tortura Psicológica.

4. "Num relatório sobre guerrilheiros da VAR-Palmares, o delegado Newton Fernandes, da Polícia Civil de São Paulo, traça um perfil de 12 linhas sobre Dilma. Segundo ele, ela era "uma das molas mestras e um dos cérebros dos esquemas revolucion...ários postos em prática pelas esquerdas radicais". O delegado diz que a petista pertencia ao "Comando Geral da Colina" e era "coordenadora dos Setores Operário e Estudantil da VAR-Palmares de São Paulo, como também do Setor de Operações"." O Globo usa aqui o título de "petista". Uma escorregadela, não sei se proposital mas reveladora. Ela não é petista? Sim, mas não era petista na ocasião do processo e da tortura. Não há cuidado histórico aqui. Vamos prestar atenção no texto: "o delegado diz que a petista pertencia ao Comando etc". O delegado não pode ter dito que a petista etc, quem diz que a petista etc é o Globo. Aqui a mistura dos tempos (passado e presente) e de vozes (o delegado e o jornalista) mostra, de novo, coom a voz do Globo se confunde com a voz do delegado. E como o alvo do Globo não é informar o leitor etc, como o jornal pode candidamente alegar, e sim atingir a "petista". O texto é de propaganda política.

5. Há um elogio à inteligência da Dilma, feito pelos documentos da repressão. Mas, numa situação como essa, a inteligência NÃO é uma virtude. Os repressores costumam exaltar a inteligência dos subversivos, não porque isso os torna melhores e sim porque os torna MAIS PERIGOSOS. Depois dessa passagem vem a resposta da Dilma ao senador Agrippino Maia. O jornal não se posiciona sobre o assunto. Deixa a Dilma se defender sozinha e questionar a tortura. Mas, o torturador já avisou antes: cuidado, ela é inflexível e muito inteligente.

6. Um adendo que está longe de ser detalhe. No Brasil ainda hoje se pratica tortura. Pode ser que não tortura com fins políticos. Mas tortura, execução sumária, esse tipo de prática ainda é recorrente no nosso país.

7. Outro: o governo Lula foi ambíguo e mesmo covarde diante da questão da ditadura militar. Não me refiro à memória ou coisa assim, e sim à questao da justiça. Honestino Guimarães, um ex-aluno da UnB, por exemplo, tem data e documento oficial reconhecendo sua morte. Mas, ainda é um desaparecido político. Conheço sua mãe, Maria Rosa, ela até hoje não sabe onde, quando, em que ano, sob que circunstâncias o seu filho foi assassinado pelo Estado. Isso pode ser estratégia política, mas é uma forma de cumplicidade.

Um comentário:

  1. Quanto ao tópico 7, longe de mim querer justificar a atitude covarde do governo Lula quanto aos desaparecidos políticos na ditadura militar, mas é importante lembrar que um pequeno ensaio de instituir uma comissão para apurar esses casos quando do anuncio do PNDH-3, houve uma verdadeira explosão de protestos da imprensa que alegava incitação ao revanchismo por parte de setores 'radicais' do Governo e que culminou com uma ameaça de crise institucional por parte dos comandantes das Forças Armadas, com apoio inclusive do Ministro da Defesa, Nelson Jobim.

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