segunda-feira, 29 de março de 2010

"A liberdade é um fruto no qual vida e morte se fundem"

Se um atento espectador do filme de Peter Greenaway encontrasse após a sessão um historiador interessado em analisar as labirínticas facetas da Revolução Francesa, eles, provavelmente, compartilhariam inúmeras emoções. Não é um exagero dizer que O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante termina com um impactante jantar revolucionário, em que os deserdados e oprimidos — dos empregados da cozinha às frágeis mulheres — vingam-se da violência desmedida de Albert, double de ladrão e proprietário de restaurante.

Tanto é assim que as referências aos séculos XVII e XVIII aparecem logo na estética claro-escuro que caracteriza a fotografia. A ligação imediata é com a pintura holandesa do XVII, mas poderia ser extendida à moral revolucionária do neoclássico francês. O corpo de Michael, o amante iluminista, morto e exposto, faz lembrar A aula de anatomia do Doutor Joan Deyman de Rembrant ou o Marat assassinado de Louis David.

Mas a atualidade dos anos setecentos se acentua com a tensão entre instinto e violência. O filme começa com um excremental espancamento! É essa tensão que se desdobra em outras contradições: entre o povo explorado da cozinha e o luxo de corte do salão de refeições, entre as necessidades e insatisfações da mulher e o achincalhe e inescrupuloso poder do ladrão, entre a fome e o desperdício. Não é o restaurante um dos lugares mais adequados ao comércio de uma de nossas necessidades mais básicas?

É só com o aparecimento do amante, símbolo encarnado de uma paixão-crítica, que as contradições abrem suas brechas. Michael, o doutor intelectual de olhares sedutores que conquista a mulher do ladrão, transtorna o ambiente público do restaurante, conspirando e copulando privadamente em nome da liberdade. Maçonaria eroticamente ilustrada? A cozinha passa então a ser abrigo de um amor rebelde, a dimensão instintiva do sexo ganha eroticidade e verbalização e a decadência do salão de refeições inscreve-se na frase-advertência de Albert: "a leitura é uma coisa indigesta"!

É, portanto, como contraponto imagético que o processo revolucionário francês aparece diagnosticando problemas sensivelmente contemporâneos. O amante, por exemplo, morre sufocado com a folha-rosto de um livro sobre a Revolução Francesa e sob seu cadáver, ainda na biblioteca, está escrito Terror. Pode-se perguntar: será que vale o amor a morte pela libertação? Será que vale a guilhotina a satisfação de algumas necessidades urgentes? Talvez, para Greenaway, valha o amor carnal e não o amor jacobino por idéias abstratamente absolutas. A liberdade é também um exercício do corpo. Tanto que o alimento oferecido ao desesperado Albert ao final do filme é o próprio corpo daquele que representava a paixão, a crítica e a liberdade.

José Otávio Nogueira Guimarães

Rio de Janeiro, 1990.

Nota do autor: Esse pequeno texto foi escrito, em junho de 1990, a pedido do Jornal do Brasil, mas acabou não sendo publicado. Trata-se de uma pequena nota sobre o filme de Peter Greenaway, The Cook, The Thief, His Wife and Her Lover (1989), lançado no Brasil, em 1990, com o mesmo título: O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante. Um ano após as retumbantes comemorações em torno dos 200 anos da Revolução Francesa, resolvi acreditar que o filme debatia com esse evento fundador de nossa modernidade política e social, fonte inesgotável de debates historiográficos. Mesmo que eu tenha tido vontade de modificá-lo, já que fazem 20 anos que o redigi, não troquei uma vírgula. Ele guarda, assim, as marcas do que era possível a esse historiador, com menos de 6 meses de formado, escrever a partir desse presente que era o seu.


sexta-feira, 26 de março de 2010

Para Pensar

"Quanto à narração dos acontecimentos da guerra, pensei não dever escreve-los confiando em informações de qualquer um, nem nas minhas impressões pessoais; falo apenas por testemunhos oculares ou depois de uma crítica tão apurada e completa quanto o possível das minhas informações. Isso não se faz sem dificuldades, pois, em cada acontecimento, os testemunhos divergem segundo as simpatias e a memória de cada um. Minha história terá menos encantos que o mito; mas, quem quiser esclarecer a história do passado e reconhecer no futuro as semelhanças e analogias da condição humana, basta-me que a considere útil. Esta história é uma conquista definitiva e não uma obra aparatosa para um auditório de momento." (Tucídides, A Guerra do Peloponeso, I, p.22)

"Nam quis nescit primam esse histororiae legem, ne quid falsi dicere audeat? Deinde ne quid veri non audeat?"
[Quem ignora que a primeira lei da história é não dizer nada de falso? E a segunda, ousar dizer toda a verdade?] (Cícero, De oratore, II, 15, 62).

Se encontra em grande parte dos historiadores greco-romanos a preferência do estudo pelo passado recente. O discurso histórico é criado no Ocidente a partir da busca pela verdade, pelo que de "fato aconteceu", diferenciando-se de outros discursos. Imperava ainda uma concepção cíclica do tempo, e a história se fazia como exemplo para gerações futuras que poderiam se encontrar em situações semelhantes: "A história seria, assim, imóvel, eterna, ou melhor, ofereceria a possibilidade de ser o recomeço eterno do mesmo modelo de mudança. E este modelo é a guerra" (Le Goff, pág. 77).


Bibliografia:

LE GOFF, Jacques. História e memória. 5. ed. Campinas: UNICAMP, 2003. 541 p. (Na BCE: 930 L516s 5. ed. =690)

quarta-feira, 24 de março de 2010

Para Pensar

" O historiador e o poeta não se distinguem um do outro pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo escrever em verso ( pois se a obra de Heródoto tivesse sido composta em verso, nem por isso deixaria de ser obra de história, figurando ou não o metro nela). Diferem entre si porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido."
ARISTÓTELES, (384-322 a.C), Poética, IX.

terça-feira, 23 de março de 2010

Lançamento de livro, A História Pensada

Organizado pelo professor Estevão Resende Martins. Com participação de outro colega nosso, o professor Arthur Assis. A História Pensada. teoria e método na historiografia européia do século XIX. Obs: no link dá pra ler a introdução, o sumário e o primeiro capítulo.

Sebastião Nunes, História do Brasil*

“Enquanto distribuía entre as gramíneas circunvizinhas, adubando-as fartamente, os restos da paçoca paulista, e antes de proclamar a independência nacional estava o augusto Pedro mergulhado em ansiedade. Para qualquer simples mortal que o visse naquele momento, as calças arriadas, a camiseta enrolada em volta da cintura para não sujar a fralda, a branquíssima bunda acariciada pelos folículos, o cocô espreitando tímida e gravitacionalmente pelo angusto orifício, nada de extraordinário ocorria, senão o mais prosaico dos atos humanos, o de devolver à terra, com parcimônia e mau cheiro, o comido e o bebido. Para um historiador francês, debruçado sobre a fulgurante epopéia napoleônica, que se supunha finalmente finda, e escrevendo sob algum numeroso Luís, Dom Pedro mal existia, primo colonial das altezas metropolitaníssimas. Para os ministros e amigos íntimos que o acompanhavam – sujos, cansados, barbudos, suados – e que conheciam desde sempre a doméstica querela, tudo se resumia em esperar (e aplaudir) a pétrea decisão, depois de afinal desvencilhar-se e limpar-se dos restos da paulistal paçoca. Para as gramíneas e seus poros captativos, bastava assimilar o nitrogênio, o fósforo, o cálcio, o enxofre e o potássio daquela farta mistura que lhes era oferecida em tão boa hora, à beira da corrente generosa, capaz de fornecer toda a água necessária à solução de tantos nutrientes preciosos. Surpresas e agradecidas diante da tonante generosidade, olharam as gramíneas para cima e viram um sol branquíssimo, mas não ofuscante, divididas em duas metades arredondadas e simétricas, pelo entremeio das quais descia até elas, como inesperada dádiva de um deus magnânimo, o abundante e preciosíssimo maná. A História (todos nós soubemos desde sempre, embora a maioria se compraza em esquecer) é apenas uma paçoca oferecida de má vontade e digerida por um estômago debilitado.”



* Sebastião Nunes é um escritor mineiro, seus livros primam pelo trabalho gráfico elaborado, pela riqueza imagética, pelos textos ácidos. O livro "A História do Brasil" merecia ser mais conhecido. Na minha opinião, é um dos melhores livros sobre a nossa história. Ele traz um evidente trabalho de pesquisa, um dos elementos do ofício do historiador, mas recorre a táticas explicitamente ficcionais (ao contrários dos implicitamente ficcionais utilizados por historiadores acadêmicos) para elaborar uma visão satírica da história do Brasil. História ou literatura? E mais, sendo literatura, observe-se o vetor de conhecimento histórico presente num texto literário. Aliás, nesse mesmo horizonte, vale a pena conhecer a obra de Valêncio Xavier.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Memória, esquecimento. Como escolher textos literários para um trabalho de história.

A memória é seletiva, o esquecimento lhe é inerente. Historiografia e memória não são a mesma coisa, mas a história se alimenta, confronta-se, vive de embates e encontros com a memória. Assim, por exemplo, quando historiadores decidem adotar textos literários como fontes históricas há, previamente estabelecida, toda uma trama de memória e esquecimento que sugere o que deve e o que não deve ser lido, como se deve ler, enfim o que seria “histórico” na literatura. Livros didáticos, comemorações, temas repetidos em jornais, entre outros, orientam as escolhas.
Mais particularmente no caso brasileiro, são inúmeros os vetores do esquecimento: em primeiro lugar, o voltado àqueles que não dedicaram sua obra à formação da nacionalidade, uma vez que desde o século XIX se definiu que a missão da literatura era dar forma ao Brasil; em segundo lugar, por motivações políticas – como, por exemplo, o esquecimento em que caíram os escritores ditos “católicos” de direita após o fim do Estado Novo, apesar da reconhecida qualidade de suas obras; em terceiro, por “desvios” nos modos de escrever tidos como desejáveis, ou mesmo compatíveis com um suposto “espírito de época”. Existem outras formas de esquecimento mais sutis, presentes não na seleção de autores e obras, mas sim na definição de modos de leitura – só para dar um exemplo, o conceito de “regionalismo” anulando inúmeras possibilidades de sentido da obra de um autor como Graciliano Ramos.
Uma das vantagens do trabalho do historiador, em meio a tantas outras desvantagens e limites, é o fato de não termos compromisso exclusivo com a “qualidade literária”. Usamos a literatura como fonte por outros motivos. Por isso, devemos ser curiosos, não nos limitarmos ao que nos foi ensinado. No caminho, encontraremos obras preciosas, mais ou menos esquecidas, mais ou menos marcadas por leituras eivadas de rótulos e desqualificações. Além disso, se sairmos do círculo estreito do cânone, poderemos também descobrir muitas coisas sobre a humanidade, o Brasil, a política, a moral – afinal de contas, o esquecimento tem mais a ver com esse tipo de coisa do que, propriamente, com a consagração ou não de escritores. O que está em jogo são os interditos, à literatura e ao pensamento. Ou seja: quando se controla a literatura por meio de canonizações e esquecimentos o que se estabelece é uma normatização sobre a escrita, a reflexão, a ética, a política.
Para encerrar essa pequena reflexão, alguns exemplos que recolhi durante minhas leituras. No esquecimento devido à questão nacional, incluo autores como Samuel Rawet e José Geraldo Vieira. Quase sumiço do segundo, talvez, motivado por uma crítica de Antônio Candido em que o autor foi desqualificado por ser cosmopolita, alienado, desvinculado das questões nacionais, em plena era do romance social de investigação. O problema não é que Candido tenha escrito isso, o problema está nos leitores de Candido que não se deram ao trabalho de conferir a obra de José Geraldo Vieira, preguiçosos seguidores do mais importante crítico literário do Brasil. E os católicos? Cornélio Pena, Adonias Filho – e, por proximidade ética e temática, Lúcio Cardoso. Para quem gosta de literatura, além de querer usá-la como fonte, deixo uma observação pessoal: para mim, os três citados escreveram livros infinitamente superiores aos de um autor consagrado como Jorge Amado, por exemplo. E a quem, por se considerar de esquerda, achar que não vale a pena ler obra de pensadores conservadores ou mesmo reacionários, lembro que um dos autores favoritos de Marx era Balzac – e procurem se informar sobre as posições políticas do francês. Aliás, boa parte da melhor literatura não foi feita para corresponder a anseios morais, a defesa de boas causas. Pelo contrário, o compromisso mais marcante da literatura, especialmente aquela que tem muito a nos ensinar, a nós historiadores, é com a densidade humana em todas as suas facetas, aquilo que um amigo meu chama de “dor do tempo”.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Walter Benjamin


“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.”

domingo, 7 de março de 2010

Marc Bloch. Sobre o ofício do historiador.

“Há muito tempo, com efeito, nossos grandes precursores, Michelet, Fustel de Coulanges, nos ensinaram a reconhecer: o objeto da história é, por natureza, o homem. Digamos melhor: os homens. Mais que o singular, favorável à abstração, o plural, que é o modo gramatical da relatividade, convém a uma ciência da diversidade. Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar. Quem não conseguir isso será, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça. Do caráter da história como conhecimento dos homens decorre sua posição específica com relação ao problema da expressão. Será uma ciência? Ou uma arte? Sobre isso, nossos bisavós, por volta de 1800, gostavam de dissertar gravemente. Mais tarde, por volta de 1890, banhados em uma atmosfera de positivismo um pouco rudimentar, pôde-se ver especialistas do método indignarem-se com que, nos trabalhos históricos, o público desse importância, para eles excessiva, ao que eles chamavam ‘forma’. Não há menos beleza numa equação exata do que numa frase correta. Mas cada ciência tem sua estética da linguagem que lhe é própria. Os fatos humanos são, por essência, fenômenos muito delicados, entre os quais muitos escapam à medida matemática.”

sexta-feira, 5 de março de 2010

Entrevista

http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1212730-7823-NOVA+GERACAO+DE+HISTORIADORES+REFORMULA+A+HISTORIA+DO+BRASIL,00.html


Esse é um vídeo do programa Entre Aspas apresentado por Mônica Waldvogel e sempre traz dois convidados para discutir um assunto. Os convidados em questão são o historiador Marco Antônio Villa (professor da UFSCAR) e o jornalista Leandro Narloch. Os dois, além de comentar suas respectivas obras (“Uma breve história do Estado de São Paulo” e “O guia politicamente incorreto da História do Brasil”), discorrem sobre uma nova geração de historiadores que reformulam a História do Brasil. Na entrevista eles perpassam por problemáticas recorrentes para o historiador como os manuais didáticos das escolas, o anacronismo e a construção de uma identidade nacional. Também tocam em temas como a invenção da tradição do samba e a posição das vítimas da Ditadura Militar como os novos mocinhos da história do Brasil. Em dado momento a jornalista Mônica Waldvogel pergunta quem tem esse poder sobre a história de dizer quem é mocinho e quem é bandido e porque uma visão tão maniqueísta. Lembrei-me, então, da afirmação de Hobsbawm de que “Nessa situação os historiadores se vêem no inesperado papel de atores políticos. Eu costumava pensar que a profissão de historiador (...) não pudesse (...) produzir danos. Agora sei que pode.” (Sara Daiane)

Nós conversamos sobre a entrevista e, apesar da minha resistência inicial, Sara me convenceu de que a discussão valia a pena. Então, resolvemos que seria legal já incluir uma discussão juntamente com o link para o vídeo.

Eu tinha visto a entrevista e não percebi qual a contribuição historiográfica dos entrevistados. A chamada me pareceu enganosa e exagerada, bem ao modo de quem precisa fisgar audiência. Marco Antonio Villa é acadêmico, dá aula na UFSCAR, não na história, mas sua contribuição a qualquer revisão historiográfica não corresponde nem de perto ao teor bombástico da chamada. Existem muitos trabalhos interessantes e questionadores que mereceriam mais atenção, de pessoas nem tão jovens assim. Sugiro que se consulte a bibliografia de autoria de Villa antes de se concordar ou não comigo. Já fiz esse trabalho, porque ele é sempre chamado a opinar em jornais e na televisão. Concluí que sua presença se dá simplesmente por questões político-partidárias. O novo livro, apresentado na entrevista, não li. Mas da forma como foi apresentado, pareceu nada inovador. Uma história do estado de São Paulo? Noto que não devemos tornar o "novo" um fetiche – fetiche em voga no mercado acadêmico e midiático - mas, como a chamada aponta para uma revisão historiográfica, acho importante assinalar isso. Ou seja, trata-se de um caso de instrumentalização da história, ou melhor, da autoridade acadêmica para defesa de posições políticas bem demarcadas. No meu entender, antidemocráticas e reacionárias.

O outro entrevistado também não me pareceu interessante. Mas não li o livro dele, então me restrinjo à impressão sobre a entrevista. Ele parece usar uma postura sofisticada, mas talvez apenas cínica, de assumir posições aparentemente polêmicas. Bem antigas, por sinal. Basta consultarmos a tradição do pensamento autoritário brasileiro. Por exemplo, a discussão sobre a ditadura apenas reproduz posições já assumidas por círculos militares. Concordo com ele que existe uma visão romantizada da esquerda,da resistência à ditadura, mas nem tudo se resume nesse tipo de afirmação genérica, superficial. Já a afirmação de que não existem documentos mostrando uma discussão sobre democracia e luta armada como opções políticas na esquerda - bem, isso é simplesmente leviano. É ignorar todas as discussões que dividiram a esquerda, bastante conhecidas, por sinal. Há um alerta interessante em suas afirmações, devemos tomar cuidado com a "boa consciência" que nos leva a crer que todas as "boas causas" são representadas por um grupo específico do espectro político. Nem toda a direita, por exemplo, defendeu tortura e terror como políticas de governo. E, sim, há muito autoritarismo de esquerda. O problema é que não acredito em crítica feita com leviandade. Alguém poderia dizer que o jornalista se dirige ao grande público, e não à academia. Mas, pergunto: para conquistar um público mais amplo é preciso ser leviano? A questão é grave porque se deve reconhecer que não há contribuição relevante da academia nesse sentido.

Seguindo a entrevista, quando ele afirma que já existia escravidão na África; isso não é, exatamente, uma descoberta. Mas, ele simplesmente ignora o sentido político, econômico e social da escravidão africana em contraste com a escravidão colonial. Novamente: para se atingir o grande público, é preciso ser superficial? A afirmação de que a colonização foi boa para os índios, isso é tão velho quanto os sermões de Padre Antonio Vieira. Ou o pensamento racial brasileiro de apologia ao branqueamento.


Revisão historiográfica ou retomada de velhos lugares-comuns? Aliás, quando vemos uma discussão como essa, a rigor totalmente ociosa (como, por exemplo, pensarmos se caso o Brasil tivesse criado por colonizadores anglo-saxões, o país seria hoje mais próspero etc etc etc), diante da qual somos tentados a pensar, e daí? É importante perceber que elas não dizem respeito, necessariamente, ao passado por si mesmo. O que está em jogo no momento? Disputa de terras, definição de marcos, propriedade e direitos indígenas.

Enfim, em minha opinião a entrevista não representa grande coisa na questão da historiografia. Mas, merece uma boa discussão por outros motivos: política, relação entre historiografia e mídia etc. Confiram a entrevista, se for do interesse procurem os livros dos entrevistados - enfim, desconfiem da minha opinião! (Daniel Faria)


Hobsbawm, Eric . Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. [ na BCE : 93/99 H684s =690]
Villa, Marco Antônio. Breve História Do Estado De São Paulo. São Paulo: Umesp, 2009.
Narloch, Leandro.
Guia politicamente incorreto da História do Brasil. São Paulo: Leya Brasil, 2009.