Se um atento espectador do filme de Peter Greenaway encontrasse após a sessão um historiador interessado em analisar as labirínticas facetas da Revolução Francesa, eles, provavelmente, compartilhariam inúmeras emoções. Não é um exagero dizer que O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante termina com um impactante jantar revolucionário, em que os deserdados e oprimidos — dos empregados da cozinha às frágeis mulheres — vingam-se da violência desmedida de Albert, double de ladrão e proprietário de restaurante.
Tanto é assim que as referências aos séculos XVII e XVIII aparecem logo na estética claro-escuro que caracteriza a fotografia. A ligação imediata é com a pintura holandesa do XVII, mas poderia ser extendida à moral revolucionária do neoclássico francês. O corpo de Michael, o amante iluminista, morto e exposto, faz lembrar A aula de anatomia do Doutor Joan Deyman de Rembrant ou o Marat assassinado de Louis David.
Mas a atualidade dos anos setecentos se acentua com a tensão entre instinto e violência. O filme começa com um excremental espancamento! É essa tensão que se desdobra em outras contradições: entre o povo explorado da cozinha e o luxo de corte do salão de refeições, entre as necessidades e insatisfações da mulher e o achincalhe e inescrupuloso poder do ladrão, entre a fome e o desperdício. Não é o restaurante um dos lugares mais adequados ao comércio de uma de nossas necessidades mais básicas?
É só com o aparecimento do amante, símbolo encarnado de uma paixão-crítica, que as contradições abrem suas brechas. Michael, o doutor intelectual de olhares sedutores que conquista a mulher do ladrão, transtorna o ambiente público do restaurante, conspirando e copulando privadamente em nome da liberdade. Maçonaria eroticamente ilustrada? A cozinha passa então a ser abrigo de um amor rebelde, a dimensão instintiva do sexo ganha eroticidade e verbalização e a decadência do salão de refeições inscreve-se na frase-advertência de Albert: "a leitura é uma coisa indigesta"!
É, portanto, como contraponto imagético que o processo revolucionário francês aparece diagnosticando problemas sensivelmente contemporâneos. O amante, por exemplo, morre sufocado com a folha-rosto de um livro sobre a Revolução Francesa e sob seu cadáver, ainda na biblioteca, está escrito Terror. Pode-se perguntar: será que vale o amor a morte pela libertação? Será que vale a guilhotina a satisfação de algumas necessidades urgentes? Talvez, para Greenaway, valha o amor carnal e não o amor jacobino por idéias abstratamente absolutas. A liberdade é também um exercício do corpo. Tanto que o alimento oferecido ao desesperado Albert ao final do filme é o próprio corpo daquele que representava a paixão, a crítica e a liberdade.
José Otávio Nogueira Guimarães
Rio de Janeiro, 1990.
Nota do autor: Esse pequeno texto foi escrito, em junho de 1990, a pedido do Jornal do Brasil, mas acabou não sendo publicado. Trata-se de uma pequena nota sobre o filme de Peter Greenaway, The Cook, The Thief, His Wife and Her Lover (1989), lançado no Brasil, em 1990, com o mesmo título: O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante. Um ano após as retumbantes comemorações em torno dos 200 anos da Revolução Francesa, resolvi acreditar que o filme debatia com esse evento fundador de nossa modernidade política e social, fonte inesgotável de debates historiográficos. Mesmo que eu tenha tido vontade de modificá-lo, já que fazem 20 anos que o redigi, não troquei uma vírgula. Ele guarda, assim, as marcas do que era possível a esse historiador, com menos de 6 meses de formado, escrever a partir desse presente que era o seu.