terça-feira, 23 de março de 2010

Sebastião Nunes, História do Brasil*

“Enquanto distribuía entre as gramíneas circunvizinhas, adubando-as fartamente, os restos da paçoca paulista, e antes de proclamar a independência nacional estava o augusto Pedro mergulhado em ansiedade. Para qualquer simples mortal que o visse naquele momento, as calças arriadas, a camiseta enrolada em volta da cintura para não sujar a fralda, a branquíssima bunda acariciada pelos folículos, o cocô espreitando tímida e gravitacionalmente pelo angusto orifício, nada de extraordinário ocorria, senão o mais prosaico dos atos humanos, o de devolver à terra, com parcimônia e mau cheiro, o comido e o bebido. Para um historiador francês, debruçado sobre a fulgurante epopéia napoleônica, que se supunha finalmente finda, e escrevendo sob algum numeroso Luís, Dom Pedro mal existia, primo colonial das altezas metropolitaníssimas. Para os ministros e amigos íntimos que o acompanhavam – sujos, cansados, barbudos, suados – e que conheciam desde sempre a doméstica querela, tudo se resumia em esperar (e aplaudir) a pétrea decisão, depois de afinal desvencilhar-se e limpar-se dos restos da paulistal paçoca. Para as gramíneas e seus poros captativos, bastava assimilar o nitrogênio, o fósforo, o cálcio, o enxofre e o potássio daquela farta mistura que lhes era oferecida em tão boa hora, à beira da corrente generosa, capaz de fornecer toda a água necessária à solução de tantos nutrientes preciosos. Surpresas e agradecidas diante da tonante generosidade, olharam as gramíneas para cima e viram um sol branquíssimo, mas não ofuscante, divididas em duas metades arredondadas e simétricas, pelo entremeio das quais descia até elas, como inesperada dádiva de um deus magnânimo, o abundante e preciosíssimo maná. A História (todos nós soubemos desde sempre, embora a maioria se compraza em esquecer) é apenas uma paçoca oferecida de má vontade e digerida por um estômago debilitado.”



* Sebastião Nunes é um escritor mineiro, seus livros primam pelo trabalho gráfico elaborado, pela riqueza imagética, pelos textos ácidos. O livro "A História do Brasil" merecia ser mais conhecido. Na minha opinião, é um dos melhores livros sobre a nossa história. Ele traz um evidente trabalho de pesquisa, um dos elementos do ofício do historiador, mas recorre a táticas explicitamente ficcionais (ao contrários dos implicitamente ficcionais utilizados por historiadores acadêmicos) para elaborar uma visão satírica da história do Brasil. História ou literatura? E mais, sendo literatura, observe-se o vetor de conhecimento histórico presente num texto literário. Aliás, nesse mesmo horizonte, vale a pena conhecer a obra de Valêncio Xavier.

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