A memória é seletiva, o esquecimento lhe é inerente. Historiografia e memória não são a mesma coisa, mas a história se alimenta, confronta-se, vive de embates e encontros com a memória. Assim, por exemplo, quando historiadores decidem adotar textos literários como fontes históricas há, previamente estabelecida, toda uma trama de memória e esquecimento que sugere o que deve e o que não deve ser lido, como se deve ler, enfim o que seria “histórico” na literatura. Livros didáticos, comemorações, temas repetidos em jornais, entre outros, orientam as escolhas.
Mais particularmente no caso brasileiro, são inúmeros os vetores do esquecimento: em primeiro lugar, o voltado àqueles que não dedicaram sua obra à formação da nacionalidade, uma vez que desde o século XIX se definiu que a missão da literatura era dar forma ao Brasil; em segundo lugar, por motivações políticas – como, por exemplo, o esquecimento em que caíram os escritores ditos “católicos” de direita após o fim do Estado Novo, apesar da reconhecida qualidade de suas obras; em terceiro, por “desvios” nos modos de escrever tidos como desejáveis, ou mesmo compatíveis com um suposto “espírito de época”. Existem outras formas de esquecimento mais sutis, presentes não na seleção de autores e obras, mas sim na definição de modos de leitura – só para dar um exemplo, o conceito de “regionalismo” anulando inúmeras possibilidades de sentido da obra de um autor como Graciliano Ramos.
Uma das vantagens do trabalho do historiador, em meio a tantas outras desvantagens e limites, é o fato de não termos compromisso exclusivo com a “qualidade literária”. Usamos a literatura como fonte por outros motivos. Por isso, devemos ser curiosos, não nos limitarmos ao que nos foi ensinado. No caminho, encontraremos obras preciosas, mais ou menos esquecidas, mais ou menos marcadas por leituras eivadas de rótulos e desqualificações. Além disso, se sairmos do círculo estreito do cânone, poderemos também descobrir muitas coisas sobre a humanidade, o Brasil, a política, a moral – afinal de contas, o esquecimento tem mais a ver com esse tipo de coisa do que, propriamente, com a consagração ou não de escritores. O que está em jogo são os interditos, à literatura e ao pensamento. Ou seja: quando se controla a literatura por meio de canonizações e esquecimentos o que se estabelece é uma normatização sobre a escrita, a reflexão, a ética, a política.
Para encerrar essa pequena reflexão, alguns exemplos que recolhi durante minhas leituras. No esquecimento devido à questão nacional, incluo autores como Samuel Rawet e José Geraldo Vieira. Quase sumiço do segundo, talvez, motivado por uma crítica de Antônio Candido em que o autor foi desqualificado por ser cosmopolita, alienado, desvinculado das questões nacionais, em plena era do romance social de investigação. O problema não é que Candido tenha escrito isso, o problema está nos leitores de Candido que não se deram ao trabalho de conferir a obra de José Geraldo Vieira, preguiçosos seguidores do mais importante crítico literário do Brasil. E os católicos? Cornélio Pena, Adonias Filho – e, por proximidade ética e temática, Lúcio Cardoso. Para quem gosta de literatura, além de querer usá-la como fonte, deixo uma observação pessoal: para mim, os três citados escreveram livros infinitamente superiores aos de um autor consagrado como Jorge Amado, por exemplo. E a quem, por se considerar de esquerda, achar que não vale a pena ler obra de pensadores conservadores ou mesmo reacionários, lembro que um dos autores favoritos de Marx era Balzac – e procurem se informar sobre as posições políticas do francês. Aliás, boa parte da melhor literatura não foi feita para corresponder a anseios morais, a defesa de boas causas. Pelo contrário, o compromisso mais marcante da literatura, especialmente aquela que tem muito a nos ensinar, a nós historiadores, é com a densidade humana em todas as suas facetas, aquilo que um amigo meu chama de “dor do tempo”.
Mais particularmente no caso brasileiro, são inúmeros os vetores do esquecimento: em primeiro lugar, o voltado àqueles que não dedicaram sua obra à formação da nacionalidade, uma vez que desde o século XIX se definiu que a missão da literatura era dar forma ao Brasil; em segundo lugar, por motivações políticas – como, por exemplo, o esquecimento em que caíram os escritores ditos “católicos” de direita após o fim do Estado Novo, apesar da reconhecida qualidade de suas obras; em terceiro, por “desvios” nos modos de escrever tidos como desejáveis, ou mesmo compatíveis com um suposto “espírito de época”. Existem outras formas de esquecimento mais sutis, presentes não na seleção de autores e obras, mas sim na definição de modos de leitura – só para dar um exemplo, o conceito de “regionalismo” anulando inúmeras possibilidades de sentido da obra de um autor como Graciliano Ramos.
Uma das vantagens do trabalho do historiador, em meio a tantas outras desvantagens e limites, é o fato de não termos compromisso exclusivo com a “qualidade literária”. Usamos a literatura como fonte por outros motivos. Por isso, devemos ser curiosos, não nos limitarmos ao que nos foi ensinado. No caminho, encontraremos obras preciosas, mais ou menos esquecidas, mais ou menos marcadas por leituras eivadas de rótulos e desqualificações. Além disso, se sairmos do círculo estreito do cânone, poderemos também descobrir muitas coisas sobre a humanidade, o Brasil, a política, a moral – afinal de contas, o esquecimento tem mais a ver com esse tipo de coisa do que, propriamente, com a consagração ou não de escritores. O que está em jogo são os interditos, à literatura e ao pensamento. Ou seja: quando se controla a literatura por meio de canonizações e esquecimentos o que se estabelece é uma normatização sobre a escrita, a reflexão, a ética, a política.
Para encerrar essa pequena reflexão, alguns exemplos que recolhi durante minhas leituras. No esquecimento devido à questão nacional, incluo autores como Samuel Rawet e José Geraldo Vieira. Quase sumiço do segundo, talvez, motivado por uma crítica de Antônio Candido em que o autor foi desqualificado por ser cosmopolita, alienado, desvinculado das questões nacionais, em plena era do romance social de investigação. O problema não é que Candido tenha escrito isso, o problema está nos leitores de Candido que não se deram ao trabalho de conferir a obra de José Geraldo Vieira, preguiçosos seguidores do mais importante crítico literário do Brasil. E os católicos? Cornélio Pena, Adonias Filho – e, por proximidade ética e temática, Lúcio Cardoso. Para quem gosta de literatura, além de querer usá-la como fonte, deixo uma observação pessoal: para mim, os três citados escreveram livros infinitamente superiores aos de um autor consagrado como Jorge Amado, por exemplo. E a quem, por se considerar de esquerda, achar que não vale a pena ler obra de pensadores conservadores ou mesmo reacionários, lembro que um dos autores favoritos de Marx era Balzac – e procurem se informar sobre as posições políticas do francês. Aliás, boa parte da melhor literatura não foi feita para corresponder a anseios morais, a defesa de boas causas. Pelo contrário, o compromisso mais marcante da literatura, especialmente aquela que tem muito a nos ensinar, a nós historiadores, é com a densidade humana em todas as suas facetas, aquilo que um amigo meu chama de “dor do tempo”.
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