Para aqueles que se interessam por história política ou história das idéias, a obra de Skinner é indispensável. Seus trabalhos são tratados como parte da chamada “escola de Cambridge” – mas, sempre é bom adotarmos cautela com termos como escola ou movimento. Contudo, neste caso podemos identificar duas linhas mestras que orientam os trabalhos de autores como John Pocock, John Dunn e o próprio Skinner. Em primeiro lugar, a consideração das fontes textuais como atos verbais. Ou seja, não como meros retratos ou reflexos de uma dada realidade e sim como intervenções, ações discursivas. Isso é importante porque em política, como em cultura, as palavras não são meros ornamentos do processo histórico. Portanto, trata-se mais de discursos do que de idéias propriamente ditas.
Uma das tarefas para esse tipo de pesquisa é tentar entender os debates que estavam por trás da produção e da circulação dos textos. Ou seja: pensar o passado não como realidade inerte, mas como conflito, estado de tensão aberto para uma pluralidade de futuros possíveis (sendo o nosso presente apenas um destes). Outra tarefa, aproximar-se do vocabulário, das regras de argumentação que configuravam os discursos, para poder interpretá-los. A segunda linha mestra, mais ligada à história das idéias, é a ampliação do leque dos textos estudados, para além daqueles que se tornaram clássicos. Isso é muito interessante porque, exatamente por terem se tornado clássicos, alguns textos são de uma familiaridade enganosa. Textos menores, ou mesmo grandes textos que caíram no esquecimento, geralmente têm um poder maior de nos revelar a densidade do passado, sua estranheza. E assim, podem nos ensinar a reler os clássicos como olhos novos.
Quanto ao vocabulário, um exemplo de outra obra de Skinner, Fundações do pensamento político moderno, é bastante instrutivo. Parte da ciência política se apropriou de Nicolau Maquiavel como uma espécie de fundador, um teórico da racionalidade do Estado moderno secularizado. O problema é que, nos revela Skinner, o conceito de Estado só foi criado no século XVII. Maquiavel dizia outra coisa quando usava o termo estado, com e minúsculo: apenas situação. Isso pode soar como um preciosismo. Mas o quanto nossa reflexão sobre política e sua história se enriquece quando notamos que, apesar de toda naturalidade aparente, a relação entre elas e o Estado é contingente. E quanto a obra de Maquiavel pode ser instigante, exatamente por não falar a nossa língua.
No livro que aqui comento brevemente, Skinner retomou uma tradição esquecida, mas que teve vida intensa até o século XVII. O autor a chama de tradição neo-romana (a qual, aliás, incluiu a obra de Maquiavel – que estava longe de ser um defensor da razão de Estado, ou do cinismo dos príncipes). Segundo esta tradição, uma república só pode ser considerada livre se os seus cidadãos tiverem a prerrogativa de agir e discursar, interferir no destino comum, sem que paire sobre eles qualquer tipo de ameaça ou sanção. Ou seja, uma “liberdade” que pudesse ser suspensa pela república simplesmente não mereceria esse título. Ainda segundo Skinner, apesar de praticamente esquecida (no sentido de não ter parte ativa na vida política) essa tradição deixou ecos, por exemplo, na independência americana e na interpretação que Marx fez do capitalismo como alienação.
Hoje, quando falamos em liberdade, na maioria absoluta das vezes queremos dizer outras coisas. Isto porque vivemos sob a hegemonia de outra tradição, a liberal. De acordo com essa tradição, uma república é considerada livre quando permite aos seus cidadãos que desfrutem de segurança, privacidade e prosperidade. Dizendo em termos mais explícitos: eu sou livre na medida em que os governantes não interferem em minha vida particular. Daí a idéia de política representativa, em que se delega a terceiros o poder de governar. Não a liberdade da ação, mas sim a liberdade da vida privada. Não por acaso, a tradição liberal convive bem com o estado de exceção (é um outro equívoco, a confusão entre liberalismo e democracia). Na medida em que a segurança dos cidadãos é ameaçada, a república pode intervir e mesmo suspender as leis, de modo a restabelecer a ordem.
Há um movimento curioso quando lemos um livro de Skinner. Em alguns momentos, ele parece uma espécie de antiquário, desenterrando textos e documentos. Um tipo de preciosismo com o passado que, aos olhos de muitos, marca a profissão do historiador. Mas, com o tempo nos damos conta de que o que ele está discutindo são conceitos correntes em nossa atualidade: democracia, liberdade, Estado, república. Termos que, de tão familiares, parecem óbvios. Entendemos então que o óbvio é testemunho de que uma tradição se impôs. Por meio dessa tradição, de que muitas vezes não nos damos conta, separamos o possível do impossível, tomamos decisões. E, como o extremamente familiar não inquieta, o óbvio é uma interdição ao pensamento. Assim,um historiador tão erudito e assumidamente acadêmico como Quentin Skinner (o autor declara enfaticamente que não escreve para o “grande público”) acaba sendo mais vital e atual do que muitos outros, que simplesmente nos satisfazem reforçando nossos preconceitos.
Uma das tarefas para esse tipo de pesquisa é tentar entender os debates que estavam por trás da produção e da circulação dos textos. Ou seja: pensar o passado não como realidade inerte, mas como conflito, estado de tensão aberto para uma pluralidade de futuros possíveis (sendo o nosso presente apenas um destes). Outra tarefa, aproximar-se do vocabulário, das regras de argumentação que configuravam os discursos, para poder interpretá-los. A segunda linha mestra, mais ligada à história das idéias, é a ampliação do leque dos textos estudados, para além daqueles que se tornaram clássicos. Isso é muito interessante porque, exatamente por terem se tornado clássicos, alguns textos são de uma familiaridade enganosa. Textos menores, ou mesmo grandes textos que caíram no esquecimento, geralmente têm um poder maior de nos revelar a densidade do passado, sua estranheza. E assim, podem nos ensinar a reler os clássicos como olhos novos.
Quanto ao vocabulário, um exemplo de outra obra de Skinner, Fundações do pensamento político moderno, é bastante instrutivo. Parte da ciência política se apropriou de Nicolau Maquiavel como uma espécie de fundador, um teórico da racionalidade do Estado moderno secularizado. O problema é que, nos revela Skinner, o conceito de Estado só foi criado no século XVII. Maquiavel dizia outra coisa quando usava o termo estado, com e minúsculo: apenas situação. Isso pode soar como um preciosismo. Mas o quanto nossa reflexão sobre política e sua história se enriquece quando notamos que, apesar de toda naturalidade aparente, a relação entre elas e o Estado é contingente. E quanto a obra de Maquiavel pode ser instigante, exatamente por não falar a nossa língua.
No livro que aqui comento brevemente, Skinner retomou uma tradição esquecida, mas que teve vida intensa até o século XVII. O autor a chama de tradição neo-romana (a qual, aliás, incluiu a obra de Maquiavel – que estava longe de ser um defensor da razão de Estado, ou do cinismo dos príncipes). Segundo esta tradição, uma república só pode ser considerada livre se os seus cidadãos tiverem a prerrogativa de agir e discursar, interferir no destino comum, sem que paire sobre eles qualquer tipo de ameaça ou sanção. Ou seja, uma “liberdade” que pudesse ser suspensa pela república simplesmente não mereceria esse título. Ainda segundo Skinner, apesar de praticamente esquecida (no sentido de não ter parte ativa na vida política) essa tradição deixou ecos, por exemplo, na independência americana e na interpretação que Marx fez do capitalismo como alienação.
Hoje, quando falamos em liberdade, na maioria absoluta das vezes queremos dizer outras coisas. Isto porque vivemos sob a hegemonia de outra tradição, a liberal. De acordo com essa tradição, uma república é considerada livre quando permite aos seus cidadãos que desfrutem de segurança, privacidade e prosperidade. Dizendo em termos mais explícitos: eu sou livre na medida em que os governantes não interferem em minha vida particular. Daí a idéia de política representativa, em que se delega a terceiros o poder de governar. Não a liberdade da ação, mas sim a liberdade da vida privada. Não por acaso, a tradição liberal convive bem com o estado de exceção (é um outro equívoco, a confusão entre liberalismo e democracia). Na medida em que a segurança dos cidadãos é ameaçada, a república pode intervir e mesmo suspender as leis, de modo a restabelecer a ordem.
Há um movimento curioso quando lemos um livro de Skinner. Em alguns momentos, ele parece uma espécie de antiquário, desenterrando textos e documentos. Um tipo de preciosismo com o passado que, aos olhos de muitos, marca a profissão do historiador. Mas, com o tempo nos damos conta de que o que ele está discutindo são conceitos correntes em nossa atualidade: democracia, liberdade, Estado, república. Termos que, de tão familiares, parecem óbvios. Entendemos então que o óbvio é testemunho de que uma tradição se impôs. Por meio dessa tradição, de que muitas vezes não nos damos conta, separamos o possível do impossível, tomamos decisões. E, como o extremamente familiar não inquieta, o óbvio é uma interdição ao pensamento. Assim,um historiador tão erudito e assumidamente acadêmico como Quentin Skinner (o autor declara enfaticamente que não escreve para o “grande público”) acaba sendo mais vital e atual do que muitos outros, que simplesmente nos satisfazem reforçando nossos preconceitos.
“Termos que, de tão familiares, parecem óbvios. Entendemos então que o óbvio é testemunho de que uma tradição se impôs. (...) O problema é que, nos revela Skinner, o conceito de Estado só foi criado no século XVII. Maquiavel dizia outra coisa quando usava o termo estado, com e minúsculo: apenas situação.”
ResponderExcluirEu tive uma professora que enfatizava que as palavras têm história e que ter esse preciosismo é dever de historiador sim. O feudo, por exemplo, nem sempre foi um pedaço de terra, como nós geralmente aprendemos. O feudo, de início era um benefício móvel como o feudo de bolsa. O historiador precisa estar sempre cauteloso, desconfiado até, ao que lhe parece muito familiar e atento ao processo de ressignificação das palavras.
Lembrei também de um texto do livro Futuro passado do Kosselleck. Para ele a análise dos conceitos fornece uma base para tornar tangível a história social, “sem conceitos comuns não pode haver uma sociedade e, sobretudo, não pode haver unidade de ação política”.
Sara Daiane