Logo que aceita a missão e é mandado de volta, os problemas de Cole já se iniciam. Ele é mandado para o ano errado (1990) e acaba parando em um manicômio. É então que entram em cena dois personagens que continuaram ligados à história de Cole, Jeffrey Goines (Brad Pitt), também paciente em 1990, e Kathryn Railly (Madeleine Stowe), sua psiquiatra. É interessante notar que sua condição no manicômio se assemelha bastante a de sua realidade inicial, a de prisioneiro. Após sua breve estadia no manicômio, Cole retorna a seu presente (2035) e é mandado mais duas vezes para 1996.
Jeffrey Goines
Brad Pitt interpreta Goines, um “louco” bastante ciente de sua situação. Logo que Cole chega ao hospício, é apresentado a Goines para que lhe mostre o lugar e suas regras. Cole insiste em fazer um telefonema, e Goines inicia um discurso bastante crítico a respeito: “Se comunicar com o exterior? Quem decide é o médico. Se os loucos pudessem ligar à vontade, iam espalhar a loucura através dos ouvidos de gente normal. Loucos por toda a parte! A praga da loucura”. Do seu ponto de vista o hospício é um lugar de isolamento, reclusão e exclusão, mais do que propriamente um lugar de cura. O louco em essência é um divergente de um padrão. Continua: “Na verdade, poucos aqui são realmente dementes, não estou dizendo que você não seja... Mas não é por isso está aqui! Não é a razão! É por causa do sistema... Sabe o que é Louco? É o que a maioria determina... Não há certo ou errado. É só opinião pública”.
Principalmente para quem assiste ao filme pela primeira vez, os discursos de Goines parecem um tanto quanto inusitados, sobretudo quando afirma que seu pai é Deus. Porém, sua forma de pensar, assim como a de Cole, é feita por uma perspectiva muito subjetiva, que não é compartilhada para com os outros. Há de se distinguir doenças cerebrais (anormalidade bioquímica, defeito estrutural do cérebro...) do que se convencionou chamar doenças mentais, não necessariamente explicadas por processos biológicos, mas também (e na maioria das vezes) por problemas, digamos assim, do cotidiano, problemas de vivência.
David Cooper define a esquizofrenia (doença modelo) como “uma situação de crise microssocial, na qual os atos e a experiência de determinada pessoa são invalidadas por outras, em virtude de certas razões inteligíveis, culturais e microculturais (geralmente familiais), a tal ponto que essa pessoa é eleita e identificada como sendo “mentalmente doente” de certa maneira e, a seguir, é confirmada (por processos específicos, mas altamente arbitrários de rotulação) na identidade de “paciente esquizofrênico” pelos agentes médicos ou quase médicos”. Entende-se o termo microssocial como um grupo finito de pessoas, em geral em interação face a face. E é assim que Cole foi tido como louco, encontrado andando por ai de cuecas e com uma capa de plástico, sem identificação, e nervoso a respeito de um vírus.
Kathryn Railly
O primeiro encontro entre Railly e Cole se dá em uma delegacia de polícia, logo após Cole ser detido por agredir policiais. A conversa entre os dois já denuncia algo de errado com Cole: “James você sabe porque está aqui?”, “Porque sou bom observador. Sou decidido”. Para a psiquiatra o diálogo que se segue não aparenta ter nenhum sentido, ela apenas percebe que James já esteve internado (Cole responde que estava preso, no subterrâneo), sobretudo devido a confusão cronológica que detecta em Cole. Para Railly, James pensa estar vivendo no futuro, em 1996. Cole retruca de uma maneira mais inesperada: “1996 é o passado”.
Desde então, Cole é identificado como louco. Os psiquiatras entendem que Cole pensa ter vindo do futuro para salvá-los, mas Cole mesmo afirma: “Como? Já aconteceu. Não posso salvá-los, ninguém pode”. De fato essa é uma premissa que é mostrada durante todo o filme, não se pode mudar o passado. Após a dramática fuga de Cole do hospício, nos deparamos de novo com Railly, agora em 1996, como uma pesquisadora do que denominam Complexo de Cassandra, a agonia de premeditar um mal e a impotência para impedir esse mal. É interessante notar que durante seu seminário “Madness and Apocalyptic Visions”, Railly mostra exemplos que, se para ela são alarmistas que sempre surgem em épocas de tensão (como peste, guerras), para um bom observador do filme, se trata de viajantes no tempo, assim como Cole.
Após o seminário, Cole sequestra Railly. E é ao longo desse sequestro (e com o inesperado término dele, o misterioso desaparecimento de Cole), numa mudança da relação psiquiatra-paciente, para sequestrador-refém, que tanto um como o outro tem sua auto-percepção, e percepção de um para com o outro alterada. Devido ao longo tempo em que é rotulado como louco, e a todo o stress que está passando, Cole se descobre, e se convence como louco: “Não estou mais louco, só sofro de divergência mental. Agora sei e quero que me ajude. Quero me curar”.
Railly por sua vez, tem suas certezas postas em dúvida. Após o sequestro uma previsão de Cole é bem sucedida, se trata de uma brincadeira de um menino que acabou virando uma notícia nacional. Soma-se a isso o fato de Railly ter retirado da perna de Cole uma bala que data da Primeira Guerra Mundial, bem como uma foto sua da mesma época. Em um diálogo com um colega Railly mostra sua preocupação, pois Cole afirmava que 5 bilhões de pessoas morreriam no ano seguinte. Owens retruca “Você é racional, é psiquiatra. Sabe distinguir o que é verdade”. Railly por sua vez: “Todos aceitam a verdade que dizemos. Psiquiatria é a nova religião”.
É interessante neste momento ligar a figura do psiquiatra (e da psiquiatria), como algo que surge com o Estado de direito. Com o processo de separação entre Estado e Igreja, surge uma necessidade de criar instituições que visam substituir a Igreja no seu papel de coesão da sociedade. Se antes o que se tinha era a figura do clérigo, que curava a alma do pecador, do profano, nota-se uma continuidade dessa postura no psiquiatra, que cura o louco, o doente. Para mim, um dos pontos do filme é uma crítica a como a psiquiatria era feita antigamente (a crítica a essa psiquiatria se inicia mais ou menos em 1960), bem como a seu status de “dona da verdade”, assim como qualquer outra ciência. Uma verdade que não é absoluta, mas construída por consenso. E isso não foge à história profissional. A validação do conhecimento histórico é sempre feita pelo tripé: documentação (de maneira bem superficial, “provas”), erudição (leitura), e aceitação pela comunidade acadêmica.
James Cole
Penso eu (e esta é uma interpretação bem própria) que o personagem de James Cole serve como metáfora para a figura do historiador. A diferença é que James retorna para o passado que está investigando, o historiador não. O passado se torna de novo presente para James, o que ao final do filme faz te-lo uma compreensão muito exata sobre o que seria passado, presente e futuro. Se inicialmente pensa que 1996 é o passado, agora não, diz: “Este é o presente. Não é o passado, nem o futuro. É agora”. O presente é o único tempo, digamos assim, concreto, um intervalo de tempo entre um surgir e um desaparecer. Passado e futuro são “abstrações”. O passado é um presente que não se verifica mais, está morto, uma experiência, o futuro, um presente que ainda está por vir, é um vir a ser, uma expectativa, um ideal. Dessa forma, o que existe é sim um presente passado, presente presente, presente futuro.
Cole encarna, assim, um historiador que volta no tempo. Através de vestígios tais como jornais, gravações telefônicas, pichações, os cientistas e Cole buscam obter o máximo de informação a respeito de um acontecimento, a proliferação de um vírus que dizimou a humanidade. Um acontecimento que em sua totalidade é muito mais complexo do que se imagina. E não é porque volta no tempo que sua investigação se torna mais fácil. Sua única pista de como conseguir uma amostra pura do vírus são os supostos responsáveis por tal ato: O exército dos Doze Macacos.
O historiador por sua vez, não tem como verificar o presente já passado. Por meio desses vestígios, desses indícios, e através do seu presente, ele cria uma representação que se referencia ao passado. Quer queira, quer não ele está preso a seu presente, e nada pode fazer, e a história está destinada a continuar sendo reformulada com o passar dos anos. É como a máxima de Cole enquanto assiste a um filme que já havia assistido quando criança: “Isto está acontecendo conosco. Como no passado. O filme nunca muda. Não pode mudar, mas cada vez que vê é diferente, porque você mudou. Você vê coisas diferentes”.
Referências bibliográficas:
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GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 281 p. (Na BCE: 930.1:133.4 G493m =690 2. ed.)
Ricoeur, Paul. A memória, a história, o esquecimento [2000]. Campinas: Editora Unicamp, 2007.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 366 p. (Na BCE: 930.1 K86v =690 )
SZASZ, Thomas Stephen. Ideologia e doenca mental: Ensaios sobre a desumanizacao psiquiatrica do homem. Rio de janeiro: Zahar, 1977. 228 p (Na BCE: 616.89 S996i =690 )
COOPER, David Graham. Psiquiatria e antipsiquiatria. 2. ed. Sao paulo: Perspectiva, 1989. 162 p (Na BCE: 616.89 C776p 2. ed. =690 )
Muito oportuno o post para a reflexão sobre as fronteiras do tempo na história.
ResponderExcluir“não se pode mudar o passado”,“Você é racional, é psiquiatra. Sabe distinguir o que é verdade”. Railly por sua vez: “Todos aceitam a verdade que dizemos. Psiquiatria é a nova religião”.
Nós historiadores não podemos mudar o acontecimento, mas podemos mudar/influenciar como as pessoas pensam se lembrar dele. Em diversas situações o historiador é chamado a ser o responsável pela verdade sobre o passado ( como num tribunal de crimes de guerra, por exemplo) perante uma sociedade da qual ele mesmo é parte integrante.
Reflexão interessantíssima!
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