segunda-feira, 21 de junho de 2010

“Ofélia, meu cachimbo e o mar”, um conto de Murilo Rubião.

Murilo Rubião começou a escrever os seus contos no final da década de 1930. Durante sua vida, o escritor mineiro foi, basicamente, reescrevendo os mesmos textos: sua obra completa é composta por 33 contos curtos. Segundo o próprio autor, as leituras que mais marcaram sua escrita foram, entre outras, a Bíblia, a mitologia grega, contos do folclore alemão e Machado de Assis. Isso dá uma pista para entendermos o seu modo de contar histórias, permeado de elementos mágicos, imprevistos, enigmas. Tudo isso, porém, visto sob o prisma do gênero do fantástico – o que significa que, em Murilo Rubião, não há uma ordem sobrenatural ou transcendente sustentando os acontecimentos “extraordinários”. Estes indicam a própria condição misteriosa do cotidiano e da banalidade.
Vou comentar um conto em que Rubião fez, no meu ponto de vista, uma interpretação da história do Brasil no horizonte do fantástico. “Ofélia, meu cachimbo e o mar” é apresentado como uma conversa entre o protagonista e uma silenciosa Ofélia. O aparente desinteresse da “parceira” pela fala do protagonista é reforçado pelo tom de devaneio do que ele diz. Em alguns momentos parece que estamos menos diante de uma conversa, e mais diante de um monólogo, como se ele estivesse apenas “pensando alto”. Em meio a estes devaneios, descobrimos que o protagonista tem uma relação visceral com o mar – relação, por vezes, grotesca ou ridícula. Seu pai morreu engasgado com uma espinha de peixe, sua esposa tinha “cara de tainha e odor de lagostas”. Seu bisavô foi capitão de navio negreiro.
Neste momento, o tom ridículo começa a ganhar um viés de humor negro. O protagonista explica para Ofélia que, apesar de falar sobre o mar, a marca de sua linhagem, das gerações que o antecederam é o gosto pela caça, especialmente por abater “animais do gênero humano”. Então, de repente, Ofélia late. E ficamos sabendo que a interlocutora do conto era uma cadela. Diante do olhar incrédulo do animal, o protagonista então afirma que sua genealogia é uma fraude, que seu bisavô “herói” violento do tráfico de escravos tinha existência apenas em sua fantasia. O fato de Ofélia ser um cachorro traz, além da surpresa, um sentido ainda mais forte de falsa conversa, pois o diálogo fingido sempre foi, de fato, um monólogo.
O que pretendo destacar aqui é que as memórias do protagonista se confundem, em muitos aspectos, com a história do Brasil. Mas, interpretada como uma espécie de “normalidade brutal”, violência miúda – ou ridicularizada como uma seqüência de acidentes grotescos. A atração pelo mar, o chamado “mundo Atlântico” e as redes do comércio escravista vistos como gosto pela caça, pura e simples. Nada de grandes navegadores, nada do mar “salgado pelas lágrimas de Portugal”. O que se complica, ainda, pelo fato de o protagonista ter um tipo de compulsão pela mentira e pelo auto-engano. Isso não quer dizer que tudo o que ele conta seja pura “invenção”. Pelo contrário, é nas entrelinhas do seu discurso que entrevemos a violência que ele parece incapaz de reconhecer por si mesmo; há verdade em seus devaneios e mentiras. Neste sentido, o conto pode ser lido como quase-paródia à mitologia nacional sobre a cordialidade, as relações sociais pacíficas ou a bondade do brasileiro. Arrisco uma comparação: o protagonista do conto poderia ser, por exemplo, alguém como Gilberto Freyre, autor de uma obra em que história e memorialística se confundem, e em que a violência é muito presente, mas pela via da denegação: “nós não fazemos isso o que estamos fazendo”.

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