quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Sobre Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino

Antes de comentar o filme (aliás, menos o filme em si mesmo do que sua relação com a história), dois exemplos comentados por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém. Shalom Schwartzbard em maio de 1926 assassinou, em Paris, um ex-comandante cossaco, responsável direto pela morte de 100.000 pessoas num pogrom ocorrido durante as guerras civis russas. Tehlirian, um armênio, assassinou Tallat Bey no ano de 1921, em Berlim. Tallat Bey tinha sido o grande responsável por outro massacre, desta vez de grande parte da população armênia da Turquia. Ambos os assassinos se entregaram à justiça e transformaram o julgamento de seu crime numa oportunidade de discussão pública sobre os massacres.
Começo por aqui porque o tema do filme de Tarantino é a vingança. Nisso, Bastardos Inglórios se parece mais com uma fábula, bem ao estilo do diretor, do que uma reconstituição histórica. O próprio filme nos dá inúmeros sinais para deixar bem claro que nada daquilo aconteceu, ao menos da forma como a história é contada. Um grupo de judeus especializados na vingança sanguinária, justiçando nazistas e até mesmo decidindo a Segunda Guerra Mundial. Mas, há aí uma situação paradoxal: o cenário, as figuras históricas (pelo menos do lado dos nazistas), as suásticas, a ocupação da França, tudo isso nos envia um sinal inverso, de compromisso com a história. Acredito que isso explique a reação da platéia, ao menos na sala de cinema em que assisti ao filme. A cada nazista escalpelado, a sala era tomada por risos. Alguém me disse que poderia ser o tal do “riso nervoso”, mas sinceramente não acho que esse tipo de reação seja muito comum. Além do mais, não havia “risos nervosos” quando judeus morriam, apenas um silêncio respeitoso.
Se o filme de Tarantino não tem pretensões históricas, a platéia está mergulhada na história. A sensação prazerosa da vingança, do justiçamento, só faz sentido a partir da combinação de dois pressupostos: o mundo é claramente dividido entre mocinhos e bandidos e a violência cometida pelos mocinhos é benéfica e reativa, diferente da violência cometida pelos maus. Que este fosse exatamente um dos argumentos nazistas, isso inquieta. A filosofia da história nazista era baseada na idéia de que só existem no mundo duas categorias de pessoas: vencedores e dominadores contra fracassados e oprimidos. Por mais insano que seja, os nazistas não se cansavam de repetir que estavam se vingando dos judeus. No caso do filme de Tarantino, há uma injunção ao maniqueísmo que tem mais a ver com a forma narrativa das fábulas de vingança – embora algumas sejam menos esquemáticas, como o conto “A hora e a vez de Augusto Matraga” de Guimarães Rosa, por exemplo. Que muitos na saída do cinema tenham visto no filme a alegria da desforra, ainda que ressentida e fictícia, eis o que lança o filme em nossa historicidade. Talvez, isso tenha mais a ver com a vida urbana atual, em que “bandidos” (mas, também, moças de minissaia) são justiçados cotidianamente. Claro: estou comentando mais a reação do público do que o filme propriamente. Mas, por outro lado, Quentin Tarantino é um diretor que, inegavelmente, sabe conduzir o público, criar tensão, fazer rir ou assustar. Então, nada disso é acidental.
As duas histórias contadas por Hannah Arendt são completamente diferentes. Estão aqui, também, porque não têm nada a ver com a hipocrisia do pacifismo a todo custo, que no final das contas apenas dá mais armas aos justiceiros. Recordo, ainda, que outras alternativas foram aventadas, além da vingança. Contra o maniqueísmo, leiam-se os relatos de Primo Levi – em especial o capítulo “A zona cinzenta” em Os afogados e os sobreviventes. A primeira obra ficcional de Samuel Rawet (tem um pequeno texto meu sobre o assunto aqui) propõe outros caminhos, menos vinculados ao apego à identidade como forma de sobreviver e vencer, ao em nome de quê você faz isso ou aquilo. Quem quiser, ainda, assistir a um filme sem a menor condescendência com a violência, seja pela via da exaltação do herói, seja pela defesa dos direitos sagrados da vítima, assista a Saló, de Pasolini.
Sobre a questão da atualidade, o filme de Tarantino deu o seu recado, embora de maneira indireta. E acredito que essa é a sua maior virtude. Numa cena, Hitler pede a um soldado SS um chiclete, antes da apresentação do filme em homenagem ao herói nazista. O outro Hitler, o da história, era vegetarino, extremamente disciplinado quanto a questões alimentares. Além disso, tinha horror à chamada Indústria Cultural americana, como sabem aqueles que leram Maus de Spiegelman. Mastigando um chiclete no cinema, Hitler vira outra coisa, diversa do líder homicida: torna-se um banal espectador de cinema, muito parecido com todos nós e nossos baldes de pipoca. Mais ainda: o filme nazista é completamente “tarantinesco”, pelo que podemos captar das cenas vistas em segundo plano. E, para completar, Hitler chora de rir ao ver a brutalidade do filme realizado por Goebbels.

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