terça-feira, 17 de novembro de 2009

Sobre “Ligações Perigosas”, de Stephen Frears




Visto sob o ângulo da análise em si mesmo, o espectador mais desatento verá no filme Ligações Perigosas a competição entre dois ex-amantes num ambiente carregado de sensualidade na França do século XVIII. Aqui, no entanto, em vez de comentar o que obviamente salta aos nossos olhos, tentaremos ponderar aspectos que compõe o cenário social dos personagens. A obra cinematográfica é baseada no romance de Pierre Ambroise François Choderlos de Laclos, em publicado em 1782.
No plano político, fomos, desde o ensino médio, condicionados a enxergar o Estado Absolutista no Ocidente como mediador entre a nobreza feudal e a nova burguesia urbana. Essa hipótese foi desenvolvida por Engels e dominou a historiografia sobre Idade Moderna por muito tempo. Na década de setenta do século passado, Perry Anderson (historiador marxista) escreveu uma obra desestruturando tal proposição no livro “Linhagens do Estado Absolutista”. Ao contrário de Engels, ele considera as instituições do “Estado burguês” apenas superficialmente modernas (o termo moderno pode levar a outras discussões que, por hora, não cabem aqui). Pois, no período inicial da Idade Moderna, a classe dominante continuou a mesma da do final do Medievo: uma aristocracia feudal. Essa nobreza passou por profundas transformações, mas não foi desalojada da sua posição de comando do poder político. Logo, a coerção político-legal de caráter pessoal (suserano/vassalo) apenas deslocou-se em direção ao Estado centralizado.
A metamorfose dessa aristocracia feudal manifesta-se na primeira cena do filme. Nela, os personagens são vestidos, calçados, banhados, maquiados por um séquio de serviçais. Em todos os momentos da película, fica evidente a formalidade e o modo correto de proceder nas mais corriqueiras (corriqueiras para nós) situações do cotidiano. Na passagem dessa nobreza feudal para os palácios e o espaço urbano, Perry Anderson fala de um “amansamento” da nobreza feudal. [“No curso desse processo, a aristocracia do final do período feudal foi obrigada a abandonar antigas tradições e a adquirir muitas aptidões novas. Teve que deixar o exercício militar da violência privada, os padrões sociais da lealdade do vassalo, os hábitos econômicos de despreocupação hereditária, os direitos políticos de autonomia representativa e os atributos culturais de ignorância iletrada. Teve que aprender as novas ocupações de um oficial disciplinado, um funcionário letrado, um polido cortesão e um proprietário de terras mais ou menos prudente. A história do absolutismo ocidental é, em grande parte, a história da lenta reconversão da classe dominante fundiária à forma necessária de seu próprio poder político (...).” P.47]
Acerca do letramento: há uma constante troca de cartas entre as personagens e é pelo meio escrito que as intrigas se constroem. A Marquesa de Merteuil (Glenn Close) pede ao ex- amante, Visconde de Valmont (John Malkovich), uma carta como prova do sucesso em seduzir a piedosa Madame de Tourvel (Michelle Pfeiffer). Em outro momento, esta mesma personagem, Marquesa de Merteuil, atesta ter a adquirido a sua “natural” sagacidade através da leitura de vários filósofos. Ou seja, “as aristocracias ocidentais tinham começado a adquirir a educação universitária e a fluência cultural até então reservada aos clérigos” (p.48). Além disso, a jovem Cécile de Volanges (Uma Thurman) é recém-saída de um colégio para moças.
Outro aspecto desenvolvido pelo historiador marxista, e que também aparece no filme, é a questão do casamento. Mesmo com a instituição das embaixadas fixas, o casamento não perde a sua posição de instrumento da diplomacia. “O supremo estratagema da diplomacia era, assim, o casamento - espelho pacífico da guerra, que tantas vezes a provocou. Menos dispendiosa como acesso para a expansão territorial que a agressão armada, a manobra matrimonial proporcionava resultados imediatos menores (em geral apenas após uma geração) e estava sujeita, por conseguinte, aos acasos imprevisíveis da mortalidade, no intervalo entre a consumação de um pacto nupcial e a sua fruição política.” (p.39) Na trama das relações interpessoais inseridas no jogo político, o microcosmo dos personagens desse filme ilustra bem a consideração explicitada acima. Na intriga contra os laços do casamento, Visconde de Valmont tem uma dupla responsabilidade: desfazer a “felicidade matrimonial” de Madame de Tourvel (ela é reconhecida em seu meio social por isso) e impedir o consórcio de Cécile de Volanges ao Conde de Gercourt.
Não gostaria de deixar aqui, entretanto, a impressão de que Ligações Perigosas é apenas um "retrato" da sociedade de corte. Há uma crítica, bem mais evidente no livro que no filme, à "corrupção" moral, ao refinamento, à insensibilidade e ao egoísmo da aristocracia. Choderlos de Laclos demonstra assim, fazer parte da crítica de viés iluminista (em alguns momentos já com tons românticos) ao Antigo Regime.
Meu objetivo, portanto, ao conectar essas duas obras, é atrelar o micro ao macro nos processos históricos. Tentar enxergar no âmbito dos dramas individuais um complexo estrutural que, de certa forma, conduz os destinos pessoais.

Anderson, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 2004.
[BCE: 321.61(4-15) A548Le 3. Ed]

Elias, Norbert. O Processo civilizador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994.
[BCE: 930.85 E42u =690]

Elias, Norbert. Sociedade de corte. Lisboa: Estampa 1987.
[BCE: 394.012(44)(09) E42h 2. ed. =690]

Villalta, Luiz Carlos. A sociedade como um teatro: Relações Perigosas.

Crítica do filme por Isabela Boscov em vídeo.

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